E no parlamento também, agora que foi aprovada a redução do IVA da tourada para 6%. 6%, um valor igual ao dos livros e menos de metade do dos espectáculos musicais, cujo IVA é de 13%.
Passadas décadas ainda estamos nisto. Equiparando economicamente e culturalmente a tourada a disciplinas artísticas como as artes plásticas ou a fotografia.
A tratar a tourada como se fosse um acontecimento cultural ao mesmo tempo que passamos risíveis decretos lei sobre o bem-estar animal. Parece um sketch dos Monty Python: garantir que o touro chega nas melhores condições à arena e com plena saúde para poder ser torturado, brutalizado e violentado para gáudio de voyeurs elitistas.
Que a tourada ainda exista em pleno séc. XXI é mau. Que seja financiada com fundos públicos, é terrível. Que o governo ainda por cima lhes reduza o IVA, é caso para perguntar se também foram alvo de embolação como os touros antes de entrar na arena
É escusado rebater os habituais argumentos favoráveis à tourada, não fará ninguém mudar de ideias num sentido ou noutro. Aliás, se há algum problema hoje em dia é o excesso de informação e a sua depuração, não a escassez. Esta não é uma questão científica ou intelectual. Não são necessários estudos para saber que uma bandarilha ao atravessar a carne do touro provoca sofrimento, totalmente desnecessário. Basta olhar para lá. A ser necessária mais investigação, proponho que se faça uma com toureiros em que assumam os papéis dos touros. Já que parecem considerar tal honraria para o touro a barbárie a que o sujeitam, porque não?
Em tempos, num programa de rádio que fazia na extinta Rádio Solar de Albufeira chamado P.R.E.C. (Punk Rock Em Curso) fiz questão de entrevistar um toureiro para lhe colocar todas aquelas perguntas que aqueles que vêem na tourada o que ela é, não um bailado ou uma arte, mas uma expressão troglodita da violência patriarcal. A meio do programa, Tito Semedo, o toureiro entrevistado, incapaz de lidar com as minhas questões, levantou-se em fúria da cadeira dirigindo-se agressivamente na minha direcção, talvez com vontade de levar a vias de facto o desejo que certamente sentiria de me silenciar. Não fosse a intervenção do Fernando Guimarães, director da Solar, e talvez a coisa não tivesse terminado pacificamente.
Não é surpreendente que o mesmo governo que insiste em fabricar uma fantasia de que existe insegurança relacionada com os emigrantes, enquanto forma de se aproximar do eleitorado neo-fascista, adopte esta estratégia com o mesmo fim. Basta olhar para as figuras de proa da tourada, como Nuno Moura que deixou uma série dos seus galgos a morrer de fome ou Gonçalo da Câmara Pereira, membro eleito pela AD, que defendeu, entre outras alarvidades, a legitimidade de agredir mulheres.
Claro que não posso estabelecer um nexo de causalidade entre ser reaccionário e entusiasta da tourada, porque há muitos reaccionários que não apreciam tourada, mas há certamente muito menos apoiantes da tourada que não sejam reaccionários.
Tenho centenas de insultos e ameaças de que fui alvo ao longo dos anos em todas as manifestações contra a tourada, nas quais não fui agredido porque acredito que, mais importante ainda do que saber lutar, é saber correr.
Generalizo à bruta e serei criticado por isso com prazer. Mas é factual a ligação da tourada com um outro mundo arruinado que insiste em recuperar, feito de fidalgos que caçam em coutadas, aristocratas com servos da gleba, virgens castas e uma classe de nobreza monárquica. Tanto assim é que, na primeira república foi considerada retrógrada e com ligações monárquicas, o que levou a que fosse colocada em causa e quase abandonada. Até ao Estado Novo, que a recuperou para efeitos turísticos e propagandísticos, altura em que se construíram muitas das arenas.
Que a tourada ainda exista em pleno séc. XXI é mau. Que seja financiada com fundos públicos, é terrível. Que o governo ainda por cima lhes reduza o IVA, é caso para perguntar se também foram alvo de embolação como os touros antes de entrar na arena.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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