O PAÍS DO PARLAPIÉ
A rajada de um olhar sobre a oferta televisiva em Portugal não poderia ser mais mortífera, dos canais generalistas ao cabo. Descontadas as raras excepções que só confirmam a regra, como manda a lei não escrita, o que diariamente é servido no prato dos portugueses como “informação” e “entretenimento” é de uma mediocridade sem limites, que muito contribui para a queda brutal dos níveis de literacias várias dos telespectadores, para o embrutecimento das mentes, a promoção de valores e sentimentos negativos, e uma caldeirada de desinformação e contrainformação.
Os telejornais, parecem decalcados uns dos outros, seguindo o mesmo guião em todos os formatos e cadeias televisivas. Até os longos intervalos para publicidade se sobrepõem uns aos outros ao segundo, muitas vezes decalcando rigorosamente os mesmos anúncios.
A busca por maior audiência leva as emissoras a convidar personalidades, mais pelo seu potencial de gerar controvérsia, do que pela sua capacidade de oferecer uma análise fundamentada
O cardápio noticioso é invariavelmente dominado até à exaustão pelo relato diário das guerras de serviço, das catástrofes naturais, dos desastres mortais, das histórias de faca, sangue e alguidar do mundo do crime, sem esquecer a ronda habitual pelas greves, protestos e manifestações de natureza laboral e sindical, pelas ruas onde pernoitam sem-abrigo, pelo cenário das labaredas, pelas escolas e urgências onde se detecte o mínimo sinal de disfunção. E, claro, com lugar cativo temporalmente abundante, o teatrinho dos líderes partidários sobre a polémica política agendada para cada dia que passa, e o relatório dos treinos, das lesões e contratações do mundo da bola. Que tudo isto se pape enquanto se leva uma garfada de comida à boca, reflecte bem o grau de insensibilidade a que se conduziu a clientela.
Meio século depois de Abril, Fátima está lá, o Fado aguentou-se e o Futebol tomou conta disto tudo. As cabeças pensantes parecem feitas de “catechugue”. Mas o modelo de alienação do tempo da outra senhora transformou-se, adaptou-se, sofisticou-se, alargou-se, modernizou-se. Adiante, siga-se para bingo. O que sobra deste composto orgânico, um espaço e um tempo minúsculo para dar a conhecer o que muito de positivo ainda se faz e se produz na comunidade dos humanos, tem uma dimensão marginal.
Boas acções, invenções, inovações, empreendedorismo, promoção da amizade e do respeito entre seres irmãos, diálogo inter-religioso, não têm lugar entre combates, assaltos e violações, que chamam mais a atenção, despertam ódios, paixões exacerbadas, logo, têm valor acrescentado na luta pelas audiências, pela conquista da publicidade.
As notícias verdadeiramente regionais e locais são aquelas que Lisboa decide valerem a pena. Mas aquilo que se tornou chocante é o excesso de comentadores políticos, desportivos e sociais que tomou de assalto o espaço televisivo, proliferando análises e opiniões contraditórias ou redundantes, numa cacofonia que não conduz a uma opinião pública informada com isenção, equilíbrio e profundidade. Onde a diversidade de perspectivas poderia enriquecer o debate, a saturação de achismos conduz à desinformação e à superficialidade das abordagens, transformando-se numa “guerra de opiniões” onde a análise aprofundada dá lugar a discussões acaloradas, mas pouco produtivas.
A busca por maior audiência leva as emissoras a convidar personalidades, mais pelo seu potencial de gerar controvérsia, do que pela sua capacidade de oferecer uma análise fundamentada. Pior ainda é a falta de isenção política da maioria dos intervenientes, actuando como agentes de forças partidárias e de activismos sortidos de que são militantes, simpatizantes ou em representação dos quais exerceram recentemente, ou ainda exercem, cargos públicos, sem fazerem sequer declaração de interesses. O excesso de vozes é confuso e frustrante, levando à incapacidade do público de navegar num oceano de informações. E tudo o que é em excesso, só pode dar mau resultado, inclusive para o próprio sistema democrático. Subitamente, o País despertou para a existência de centenas de “especialistas” em qualquer assunto e coisa nenhuma, falando como papagaios palradores e sabichões.
Portugal é hoje o país do parlapié. O panorama do chamado “entretenimento” não poderia ser mais desolador. Concursos forretas nos prémios aos participantes, que “enchem chouriços” com horas e horas de tempo de antena a baixo custo de produção. O mesmo se diga das longas tardes de entrevistas choramingas e docinhas a puxar à lágrima e ao sentimento. Musicalmente, o vírus do “play back” domina aparições deprimentes de artistas desconhecidos, bamboleando-se para as câmaras, cujo cachet é pago em espécie pelo simples anúncio da próxima actuação em Currais de Baixo ou no “estrangeiro” (leia-se, circuito da emigração), ou da saída de um CD de que nunca mais se ouvirá falar. Concertos a sério, com artistas ao vivo, programas musicais de qualidade, nem vê-los.
O Festival da RTP transformou-se há muitos anos numa parada de mau gosto, de gente malvestida, um desfile de horrores na maquilhagem e nas músicas selecionadas com critérios insondáveis. Salvador foi milagre.
Ao nível dos pacotes das operadoras por cabo, paga-se um preço demasiado elevado por filmes há muito enterrados, séries de quarta classe repetidas sucessivamente, doses insanas de violência, ou por jogos de bola de campeonatos que não interessam nem ao menino jesus. Quanto menos tempo se passar diante do écran, melhor para a saúde.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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