Memórias de um (não) diário
“Às vezes pergunto-me. Porque atacas os poderosos, não bates a pala a generais, satirizas este país de professores doutores, desconfias da administração da Justiça, torces esse nariz algarvio a este Orçamento do Estado, distancias-te da ganância dos grandes grupos económicos e financeiros, cortas a direito sem olhar a quem, não aderes aos poderes secretos? O que ganhas com isso? Não te apercebes do que podes deixar de ganhar por não estar calado? E só me vem uma resposta ao espírito: está na minha natureza posicionar-me ao lado dos fracos, dos pequenos, dos humildes, em contraponto aos fortes e poderosos. Não sei explicar porquê. Não vem de cartilha ideológica nenhuma. Vem de pequenino, mal rebentado estava o pepino. Detesto as injustiças, as arbitrariedades e as prepotências, as vaidades de quem julga ser dono do mundo, do alto de um poleiro político ou da sua carteira recheada. Sinto asco pela caridadezinha interesseira. Declarei guerra aos poluidores do universo, preciso de ar puro. Gosto de empreendedores, não gosto de especuladores. Aprecio a inovação, desaprecio os copiadores baratos. Não sou de esquerda nem de direita. Sou pelos valores que emanam da dignidade humana, pela igualdade de oportunidades. Pelos que sobem na vida a pulso. Mais pela terra que pelo cimento. Mais pelo trabalho, que pela greve. Desconheço a preguiça. Um aldeão com mundo na mala. Ser fazedor entusiasma-me. Mobiliza-me. Quem me dera viver num país sem corrupção e sem “cunhas”, sem gorjetas nem contrapartidas por qualquer gesto genuíno. Prefiro o local e o regional, à asfixia do centralismo. Quero o público e o privado delimitados, sem conflito de interesses. Tenho um sentido simétrico da vida. Sou um irrequieto quanto baste, um idealista com pés assentes, um provocador respeitador. Gosto do meio, gosto do médio, quero que os extremos não se distanciem ilimitadamente do centro. E acho que nada disto tem a ver necessariamente com mediania, medianas ou mediocridade. Pela boca morre o peixe, logo, é perigoso ter o coração colado à boca. Porque não te calas então? Está na minha natureza” – respondi-me!
Este texto foi escrito no dia 15 de Agosto de 2010. Quem escreveu? Eu próprio! Na madrugada seguinte a ter falado em Quarteira perante milhares de pessoas, e ter dito o que poucos ousariam dizer em público. O que reflecte? Um estado de espírito, fotografia de um momento. Para que serve? Para medir a consistência do pensamento com o passar do tempo. Catorze anos depois, ainda não lhe retiro nem uma vírgula. Está naquilo que poderia chamar de (não)diário, porque escrever me liberta, e faço-o quando disso preciso, quando calha, não por religiosa obrigação. Ali se registam factos, personagens, datas, locais que, negativa ou positivamente, mexeram comigo. São relíquias que um dia reencontramos, memórias que o alzheimer não apagará.
O (não)diário recebe tudo o que com ele se queira partilhar, confessar, desabafar, sem julgamento nem contradição. Ali, podem-se confiar pensamentos, ambições, planos e vontades. Como um espelho, permite um conhecimento de si mesmo, às vezes uma descoberta, uma escuta sem devolver eco, não há perturbação. Só a nossa verdade. Ali se descarregam emoções e tensões transportadas nos fardos da vida quotidiana, como quem passa os problemas para trás das costas e reinicia a caminhada de bandeirada limpa. Gostos e desgostos no amor. Ilusões à primeira vista, desilusões com alguém. É como quem toma um banho espiritual, uma catarse purificadora, um silêncio sem temor, um bálsamo numa pele martirizada. Depois de escrever, sente-se alívio, paz, um sinal de pausa na nossa guerra. Cada página nova, é uma porta que se abre à imaginação e à criatividade que podem inspirar o dia que se segue, cheio de sonhos, ideais, metas e objectivos.
Ler páginas antigas é como fazer uma viagem no túnel do tempo, com a vantagem de se poder reescrever e corrigir com um sorriso condescendente nos lábios. Escrever liberta, já disse. Mesmo quando verificamos que a mudança também passa inexorável pelo nosso corpo e pela nossa mente. Quem sabe, são escritos que perdurem para a posteridade, ou sirvam de base a uma autobiografia.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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