Han Kang, escritora sul-coreana, foi laureada com o Prémio Nobel da Literatura deste ano, como anunciado na manhã de quinta-feira, dia 10 de outubro. Nasceu em Gwangju, na Coreia do Sul, e mudou-se para Seul aos dez anos. Estudou Literatura Coreana na Universidade de Yonsei.
Em 1994 começou a sua carreira de escritora vencendo um concurso literário em Seul.
A Vegetariana, o seu primeiro romance publicado pela Dom Quixote, ganhou o Man Booker International Prize em 2016.
Atos Humanos venceu o Prémio Manhae na Coreia do Sul e o Prémio Malaparte em Itália.
O Livro Branco foi, em 2018, finalista do Man Booker International Prize.
Os seus textos receberam os prémios literários Yi Sang, Jovens Artistas Contemporâneos, Melhor Romance da Coreia, Hwang Sun-won e Dongri.
Foi professora no Departamento de Escrita Criativa do Instituto das Artes de Seul. Atualmente dedica-se exclusivamente à escrita. Está publicada em mais de trinta línguas.
A autora já visitou Portugal, pois esteve presente na Feira do Livro do Porto, em 2017. Essa vinda coincidiu com a publicação do romance Atos Humanos. No ano passado recebeu outro importante prémio literário, como o Médicis, que venceu ex-aequo com Lídia Jorge.
A Dom Quixote anunciou que em janeiro de 2025 publicará o mais recente romance da autora, que terá como título Despedidas Impossíveis, o mesmo que no ano passado conquistou, em França, o Prémio Médicis.
Todos os romances publicados em Portugal têm a chancela da Dom Quixote, com tradução de Maria do Carmo Figueira.
A Vegetariana, de Han Kang – Da vegetação do desejo de não-ser
A Vegetariana, da autora sul-coreana Han Kang, com tradução de Maria do Carmo Figueira, venceu o Prémio Man Booker International de 2016, tendo sido originalmente publicado na Coreia do Sul em 2007. A tradução apenas chegou ao público internacional graças a uma jovem que basicamente aprendeu coreano para conseguir traduzir o livro e só pelas primeiras 10 páginas os direitos de publicação do livro foram adquiridos por uma editora. A tradução chegou a Portugal também em 2016, com o selo da Dom Quixote. Existe ainda uma adaptação cinematográfica do livro, num filme coreano lançado em 2009 e que chegou ao Festival de Sundance em 2010. A autora tem ainda outra novela adaptada ao cinema, tendo escrito contos e dois romances antes de A Vegetariana.
Bastam as primeiras páginas para ficarmos imediatamente cativados por esta história de uma mulher, uma dona de casa banal e que o próprio marido mal conhece, de tal modo se move pela vida de forma silenciosa e passiva, até que certo dia espalha toda a carne e peixe do frigorífico pelo chão da cozinha e anuncia ao marido que vai ser vegetariana. Quando o marido reage com espanto ela própria não sabe explicar os seus motivos, dizendo apenas que teve um sonho.
O livro apresenta-se em 3 partes. A autora escreveu-o intencionalmente durante um período de 3 anos, de modo a que as várias partes fossem autónomas, ainda que interdependentes, como 3 contos sequenciais, com protagonistas distintos, ainda que toda a intriga gire em torno de Yeong-hye. Primeiro, esta é-nos apresentada pela perspetiva do marido, que reage com brutalidade à transformação da mulher, depois é através da ótica filtrada pelo desejo do cunhado, artista que vai aliás acabar por alimentar na cunhada um desejo de metamorfose mais profundo, até, por fim, ser através da irmã quatro anos mais velha que encontramos Yeong-hye agora hospitalizada a recusar-se por completo comer. O médico usa o diagnóstico “anorexia nervosa”, mas na verdade aquilo a que Yeong-hye realmente aspira é agora transformar-se por completo numa árvore. Entretanto, devido à sua esquizofrenia ou a este processo de recuperação de identidade, de retrocesso às origens da pureza do ser, toda a família de Yeong-hye soçobrou: marido, pais, irmãos, cunhados. A metamorfose que se processa em Yeong-hye quando se recusa terminantemente a comer carne começa a ter implicações físicas bem visíveis, o que leva o marido e a família a duvidar da sanidade da protagonista que aliás acaba por ser hospitalizada e depois internada, em consequência de um confronto com os mesmos – note-se aliás o choque que toda a gente parece sentir face à sua decisão de se converter ao vegetarianismo (aparentemente uma questão culturalmente impossível no país da autora).
A escrita é trabalhada, depurada, sem floreados ou rodeios, mas extremamente visual, cinematográfica aliás, e há imagens que de facto serão difíceis de esquecer. E a história, que quase nunca dá voz à personagem que se diria principal, a não ser quando esta nos narra os sonhos que teve, acaba por deixar o leitor numa periclitante linha entre o desejo e a aversão. Tirando pelo desejo de proteção da sua irmã, mas que é também quem a manda hospitalizar, só o cunhado demonstra simpatia pela vegetariana, e essa simpatia está claramente toldada pelo seu desejo obsessivo, como se a cunhada que ele descobre ter uma mancha mongólica, algo que deveria desaparecer durante o crescimento da criança, fosse apenas um veículo das suas fantasias.
Assim que iniciei a leitura deste livro ecoavam em mim as palavras de um ensaio que li recentemente de Alberto Manguel, em O Bosque do Espelho, sobre a literatura erótica:
«Confrontada com a arte de fazer com uma variedade espantosa de objectos e de temas, actos e variações, sentimentos e receios; (…) andando sobre uma lâmina entre a pornografia e o sentimentalismo, a biologia e a prosa rebuscada, o recato e o excessivamente explícito; ameaçada pela intenção das sociedades de preservarem as aristocracias do poder estabelecido através das forças de censura da política, da educação e da religião, é um milagre que a literatura erótica não só tenha sobrevivido todo este tempo como se tenha tornado mais ousada, mais inteligente, mais confiante, perseguindo uma infinidade multicolor de objectos de desejo.» («As portas do Paraíso», pág. 88).
Apesar de, na segunda parte, narrada a partir da perspetiva do cunhado, termos um momento extremamente erótico como há muito tempo não encontrava em literatura, A Vegetariana não inicia como um romance erótico. Antes lembra um livro de Murakami com o seu fantástico subtil que se imiscua por entre o quotidiano banal e monótono – o que o levou a ser confundido com os realistas mágicos -, como O Sono, em que uma mulher deixa subitamente de conseguir dormir o que leva a uma espécie de existência dupla, vivida de dia e de noite. A dada altura, aliás, tanto Yeong-hye, a protagonista, como a irmã deixarão de dormir, mas por motivos diferentes: uma porque receia os sonhos ou visões noturnas que lhe chegam, a outra porque está deprimida, apesar de levar uma vida de sucesso e aparentemente perfeita, cumprindo com exemplaridade os seus papéis sociais.
A violência imiscui-se por diversos momentos ao longo do livro, inclusivamente quando a tentam prender na cadeira e a forçam a comer um bocado de porco, abrindo-lhe a boca à força, até o pai lhe dar uma bofetada quando ela cospe a carne; o momento em que ela se corta perante a mesa de família; o abuso sofrido em silêncio por ambas as irmãs quando os respetivos maridos as forçam a ter relações. É aliás pelas suas visões violentas, e tanto nas visões como na realidade, encontramos como constante o jorro de sangue, que a personagem decide renunciar à carne, e, no seu processo gradual de emaciamento, à vida em geral, querendo apenas enterrar a cabeça no chão, sentir os braços a criar raízes e estender as pernas para o ar como uma copa de árvore que cresce na direção do sol. A Vegetariana pode assim ser lido como um manifesto (diria mesmo feminista) contra a violência e de encontro da pureza de ser não-humano: Yeong-hye é aliás descrita várias vezes como tendo a serenidade de um monge, sendo que a violência nela só se manifesta quando é violentada.
No fim, as interrogações que A Vegetariana deixa são: até que ponto somos realmente sãos na sociedade em que vivemos, até que ponto somos livres para seguir os nossos sonhos, até que ponto podemos fazer com que os outros respeitem as nossas decisões, mesmo que elas impliquem actos que aparentemente atentam contra a nossa vida, qual é a barreira entre a loucura e o desejo são. Nas palavras da própria autora: «I was thinking about the spectrum of human behavior, from sublimity to horror, and wondered, is it really possible for humans to live a perfectly innocent life in this violent world, and what would happen if someone tried to achieve that?».
Atos Humanos
Uma prosa enfeitiçante e um livro cativante que prende rapidamente o leitor, apesar da ambiguidade próxima de um ambiente fantástico que por vezes toca o grotesco, mas sempre sem perder o lirismo.
Depois do êxito de A Vegetariana, a Dom Quixote publica o segundo romance da Han Kang, professora de Escrita Criativa no Instituto de Artes de Seul, publicado originalmente em coreano em 2014 e traduzido a partir do inglês numa tradução atenta e cuidada de Maria do Carmo Figueira.
No primeiro capítulo narra-se a história de um rapaz que procura o amigo, sendo esta voz narrativa bastante peculiar pois é narrada na segunda pessoa, como se o narrador falasse com a própria personagem: «- Parece que vai chover – murmuras para ti próprio.» (p. 13)
Esta segunda pessoa que parece dirigir-se ao leitor, identificando-o com o rapaz, marca o tom desde a primeira linha atrás citada, e apesar da ambiguidade e dos contornos incertos do que se descreve incita a uma leitura implícita da obra como um retrato político de uma realidade traumática vivida na Coreia do Sul, nos anos 1980, que resultou num dos piores massacres da história do país.
No segundo capítulo, encontraremos «O amigo do rapaz» e perceberemos que ele está morto, contando-nos a sua perspetiva do desfecho do massacre, primeiro como cadáver e depois como fantasma.
Aqui narra-se, primeiro com ambiguidade, mas depois sem rodeios e cada vez com mais precisão, a brutalidade da repressão e da censura, num momento particularmente delicado na história da Coreia do Sul, quando o país vive sob a lei marcial e depois Park Chung-hee é assassinado pelo próprio chefe dos seus serviços de segurança, apenas para suceder ao poder outro militar autocrata.
Para narrar o inacreditável, embora verídico, massacre de quando em 1980 os estudantes se revoltaram contra o encerramento das universidades e a falta da liberdade de expressão, a autora-narradora opta por filtrar os acontecimentos de forma intimista e pessoal, num tempo narrativo em que o passado se intromete recorrentemente no presente, a lembrar que a voz da história não dá descanso.
O Livro Branco
A decisão tomada na primavera de escrever sobre coisas brancas. Uma lista em que a cada item há um estremecimento de decisão. A perceção de como a escrita pode ser regeneração. Reencontrar a brancura das palavras no branco da página escrita. Ouvir o silêncio. Descobrir o sentido das palavras. Despertar memórias tão antigas que parecem esquecidas numa cidade estranha. Mergulhar no passado para voltar à vida. Ressurgir do nevoeiro.
A autora narra na primeira pessoa como chegou a uma cidade estranha e procura um apartamento, sendo que a primeira coisa a fazer é comprar uma lata de tinta e pintar de branco a porta. Ao andar pela rua, onde todas as palavras são estranhas, e os fragmentos de conversas incompreensíveis, a autora encontra no isolamento «fragmentos inesperados de recordações» (p. 23), tão opressivos quanto a urgência em grafá-los no papel.
A «Cidade Branca» é indiciada, mas nunca designada. Mas para quem lá viveu (como é o meu caso) ou para quem conhece a história, facilmente encontra a resposta unindo as várias pistas: 95% da cidade dizimada em seis meses, a partir de outubro de 1944; a ilusão de uma cidade coberta por um manto branco de neve ou gelo numas filmagens, quando na verdade a cidade está reduzida a cinza; nada existe há mais de 70 anos, e tudo o que foi erigido é uma reconstrução a partir de imagens, fotografias, mapas.
Mas o fantasma branco que reemerge do nevoeiro e conduz verdadeiramente a narrativa é a sua irmã, o primeiro bebé que a mãe teve e que apenas viveu duas horas. A criança cuja sobrevivência poderia significar a não-existência da autora. E é em torno do luto dessa irmã nunca conhecida, «uma menina com um rosto tão branco como um bolo de arroz em forma de meia-lua» (p. 19), que a autora une os vários símbolos da narrativa, quase todos ligados à morte (e por conseguinte à vida): a neve; o recém-nascido branco (e o branco é aqui não só a pureza mas a ausência de cor de uma morte definitiva) envolto em panos brancos; o leite materno que a mãe expulsará do peito; ossos desfeitos em pó; magnólias que significam revivificação (as flores brancas são a morte ou a vida?); cubos de açúcar; um grou; estrelas; nuvens; nevoeiro; fantasmas; a Lua; os primeiros dentes de um bebé; arroz branco cozido e que representa uma oferenda; um sudário branco; vestes brancas de luto queimadas e dissipadas em fumo branco; papel branco…
Depois de Atos Humanos, este foi o terceiro livro da autora publicado entre nós pela Dom Quixote, e resulta de uma residência literária em Varsóvia.
Um livro experimental, parcialmente autobiográfico, poético, em jeito de glossário, de pensamentos soltos sobre a vida, a morte, a beleza. Uma nota final para a própria capa do livro, belíssima, inevitavelmente branca, com letras prateadas, e um marcador a preto e branco…
Lições de Grego
Lições de Grego, com tradução de Maria do Carmo Figueira, é o mais recente livro da autora sul-coreana publicada pela Dom Quixote. Publicado em 2023, coincidiu com a atribuição do Prémio Médicis Étranger (pois passou-se a contemplar autores estrangeiros) foi em ex-aequo, atribuído a Lídia Jorge e a Han Kang. O Médicis Étranger premeia a edição francesa de Impossibles Adieux que a Dom Quixote já anunciou que será publicado em 2024.
Han Kang ficou mundialmente conhecida quando A Vegetariana (livro depois adaptado a filme) venceu, em 2016, o Man Booker International Prize, entre autores conceituados como Elena Ferrante e Ohran Pamuk.
Lições de Grego, publicado em setembro de 2023, traz duas histórias que se entrecruzam, a de uma jovem mulher que está a perder a voz e a do seu professor de Grego que está a perder a visão. Às duas histórias correspondem também modos narrativos distintos, a da mulher que está num processo irreversível de mutismo contada na terceira pessoa, por um narrador omnisciente, e a do professor, contada na primeira pessoa, e que toma como narratárias mulheres diferentes – primeiro, a sua primeira paixão, e depois, a sua irmã mais nova, a quem escreve breves cartas.
Ambos transportam ainda secretas mágoas que podem, afinal, estar na origem dos seus males físicos. Ela, em poucos meses, perdeu a mãe, perdeu a batalha pela custódia do filho e, num instante súbito, perde a voz pela segunda vez na sua vida. Ele perdeu o pai, que um dia partiu sem explicação e que nunca o aceitou, acusando-o de ser feminino (instando-o a ser mais como a irmã que, por outro lado, era bastante masculina), e porque viveu a infância e a juventude fora, na Alemanha, ao crescer sente-se irremediavelmente perdido entre dois países, duas culturas, duas línguas tão diferentes – talvez por isso tenha escolhido fazer vida a ensinar grego, como que num regresso às origens da civilização.
“Já não pensava com a linguagem. Movia-se sem linguagem e compreendia sem linguagem” (p. 15).
Lições de Grego ecoa a temática de A Vegetariana, na forma como esta mulher, naquilo que parece primeiro um sintoma involuntário de algum mal físico, decide renunciar à fala, optando pelo silêncio, pela não-linguagem, como quem decide retroceder a um estado existencial primitivo, puro, primevo, não-corrompido por convenções e normas sociais. Paradoxalmente é na aprendizagem de línguas estranhas, muito distantes do coreano, neste caso o grego – por ser a opção possível – que ela procura algum sentido.
O silêncio aqui aparece curiosamente associado ao gelo, o que também remete o leitor para outra obra da autora: O Livro Branco.
“Se a neve é o silêncio que cai do céu, talvez a chuva seja uma frase sem fim.” (p. 177)
Na parte final do livro, a prosa começa a libertar-se e assemelha um longo poema. Também mais perto do fim percebemos como afinal a grande temática deste livro é a comunhão com o outro, algo que está além do vocabulário humano… É num longo solilóquio que o professor de grego tentará derreter o gelo da sua aluna e chegar ao seu centro.
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