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Doutorado em Literatura na UAlg
e Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)
Eu Sou Uma Rapariga Sem História, de Alice Zeniter, foi publicado pela BCF Editores, com tradução de Maria João Madeira, e beneficiou do Programa de Apoio à Publicação do Institut Français de Portugal – Embaixada de França em Portugal.
Um pequeno, precioso e divertido livro com cerca de 88 páginas em que Alice Zeniter defende que, desde os mitos fundadores até às discussões de café e à propaganda política, a narrativa estrutura a experiência humana.
Neste ensaio a autora recupera disciplinas como a semiologia, a linguística ou a narratologia, por vezes tidas como abstrusas, propondo este texto como uma introdução ao poder da ficção, relembrando-nos como as histórias estão bem vivas no nosso quotidiano.
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“As nossas vidas são em grande parte constituídas de texto empilhado em texto. Todos vocês, notem bem, são tricotados com sintaxe e tecidos com proposições conjuntivas.” (p. 44)
Neste livro-palestra, muitas vezes irreverente, divertido, escrito num tom pessoal, a autora acusa como “estamos todos a contar histórias uns aos outros, o tempo todo”, pois “estamos impregnados de narrativizações que já nem detectamos” (p. 10).
Este é também um testemunho de uma autora que se admite feminista:
«Ainda hoje, uma boa história é muitas vezes a história de um tipo que faz cenas. E em podendo ser violenta, em podendo incluir carne, uma carabina e lanças, melhor é.» (p. 27)
O título é claramente irónico. Até porque uma das narrativas que teve de criar foi tecer a sua identidade, face aos mitos literários de obras escritas por homens que explicam como se ser uma boa mulher. «Em A Ficção como Cesta a autora americana Ursula K. Le Guin interroga-se sobre como é que a nossa civilização de caçadores-recolectores se tornou um berço de narrativas que não falam senão de caçadores. Compara o facto de a carne ocupar uma parcela mínima da alimentação (65 a 80% da alimentação dos humanos era colhida) e o lugar imenso ocupado pelos caçadores de mamutes nas paredes das cavernas e nos espíritos. Não é porque a carne era crucial que os caçadores se impuseram, é porque a sua história era melhor. E é verdade que as narrativas da colheita são um pouco difíceis de construir. Se vos contar, por exemplo, que passei o meu dia no bosque e que colhi um mirtilo e depois outro e depois outro ah e ainda outro, dez mirtilos, vinte mirtilos… A coisa não é excitante. É certo que posso experimentar um acréscimo de intensidade: Hoje, colhi um mirtilo! Seguido de outro mirtilo! E de súbito deparei com uma maravilhosa parcela de mirtilos, eram vermelhos e brilhantes, os mais belos mirtilos de sempre, e colhi-os às mancheias e… Enfim, mais vale admitir, mesmo que junte o pretérito perfeito, quiasmos e homeoteleutos, corro o enorme risco de vos maçar. Mas se vos contar que um mamute monstruoso veio direito a mim?» (pp. 12-13)
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Eu Sou Uma Rapariga Sem História parte desse pequeno ensaio de Ursula K. Le Guin (já aqui apresentado), mas vai ainda a diversos autores e obras clássicos, especialmente os que criaram protagonistas muito pouco simpáticas às mulheres, como Anna Karénina. Por isso tão depressa lemos sobre Umberto Eco, sobre filmes como o Shrek ou o Avatar, ou relembramos personagens de Os Miseráveis, ou se imaginam diálogos entre Aristóteles e Péricles, a relembrar algumas teses da Poética.
Alice Zeniter nasceu em 1986 em Clamart, na periferia de Paris. Estudou Literatura e Teatro e ingressou depois na École Normale Supérieure e na Sorbonne Nouvelle — Paris III. Publicou o primeiro romance, Deux Moins Un Égal Zéro, aos dezasseis anos e com L’art de Perdre (2017), a história de uma família na Guerra da Argélia, ganhou o Prémio Goncourt des Lycéens e o International Dublin Literary Award. É tradutora de Martin Crimp e Chris Kraus e membro da companhia de teatro de La Comédie de Valence.
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