Elidérico
Foi assim, de forma brutal e inesperada, que perdi o meu colega de página no Postal do Algarve dos últimos três anos, e um amigo de várias décadas. Elidérico partiu sem aviso, sem um ésse-éme-ésse, sem uma telefonadela, sem um último almoço aprazado sem data certa, numa emboscada traiçoeira do miocárdio, mais mortífera que as granadas em Empada, na Guiné, nos alvores dos anos setenta. É fácil fazer epitáfios quando alguém desaparece da nossa cena de afectos, mas ainda mais fácil se torna quando o que se escreveria em vida como prefácios é uma equação rigorosa no balanço das qualidades.
Elidérico José Gomes Viegas foi aquilo a que se pode chamar com propriedade um “algarvio de gema”, filho de Paderne, que cresceu, viveu e morreu no Algarve que tanto amou e que nunca abandonou, excepção feita à incorporação forçada na guerra colonial. Foi filho de família tradicional, gente do campo, educado num quadro de valores que andam tão escassos nos dias que correm, como a integridade, a honestidade, a verdade, a família e a amizade verdadeira e sincera. Social-democrata convicto, ele incarnou na sua plenitude o conceito de quem sobe na vida a pulso, gradualmente, pelo seu esforço e pelo seu trabalho, pelo mérito e não por força de qualquer cartão partidário ou cunha de conveniência. Não se fez homem ungido por berço de ouro ou herança predecessora. Vocacionado para o Turismo, com dom especial para a palavra e a interacção com os outros, percorreu a escala profissional sempre em ascensão desde os 17 anos de idade. Recepcionista, chefe de recepção, subdirector, director de hotel, empresário.
Desde Sérgio Palma Brito, ninguém no Algarve traduziu por escrito a teorização de um tão vasto conhecimento prático de todas as abordagens do fenómeno turístico
Na mesma direcção foi o seu percurso académico, desde um “costoleta” não elitista na Escola Comercial e Industrial de Faro, foi somando diplomas, certificados e cursos em gestão e marketing ligados ao turismo, até à graduação universitária em Gestão Hoteleira. Foi um viajante pelas sete partidas do mundo, acrescentando conhecimento aos momentos de lazer, numa aprendizagem permanente com os melhores do sector, com as novidades do mercado. Foi fundador e presidente da mais importante associação empresarial do Algarve, talvez a única autossustentada, a AHETA (Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve), e nessa qualidade tornou-se uma das vozes mais ouvidas, respeitadas e autorizadas no Algarve e no País, falando de Turismo, mas sempre em defesa da Região, da qual se tornou um verdadeiro embaixador. Foi irreverente, desafiador perante qualquer poder, mas sempre colocando o interesse colectivo desta terra acima de quaisquer outros, dizendo verdades onde outros se acobardavam. Desde a sua saída dessa função, ocorrida nas circunstâncias inopinadas que se conhecem, nem a associação nem o Algarve recuperaram o protagonismo e o prestígio que conheceram sob o cunho de Elidérico. Curioso nome este, invulgar e raro, de etimologia germânica, Aldric, em que “ald” significa velho, e “ric”, governante e poderoso. Velho, não era, Elidérico partiu cedo demais. Poderoso, sim, é o seu exemplo de vida, que deixa um traço de saudade e uma responsabilidade colectiva de o relembrar aos vindouros.
Aqui ficam os trabalhos de casa para uma série de entidades. Desde logo, os autarcas de Paderne e Albufeira devem encontrar na toponímia da vila natal e da cidade capital (do Turismo) locais condignos e à altura do vulto de dimensão nacional que acabam de perder, para perpetuar a sua memória. A Região de Turismo do Algarve deve organizar uma sessão evocativa e de homenagem póstuma a Elidérico Viegas. A Escola Superior de Hotelaria e Turismo da Universidade do Algarve deve promover a edição da colectânea de todos os artigos publicados neste jornal por Elidérico Viegas e outros em publicações diversas.
Desde Sérgio Palma Brito, ninguém no Algarve traduziu por escrito a teorização de um tão vasto conhecimento prático de todas as abordagens do fenómeno turístico. Será uma obra de referência, um acervo e um legado para todos os que no sector trabalham e para os jovens com aprendizagem em curso para uma carreira profissional. A AHETA, de cuja fundação e afirmação foi o principal obreiro, deve, no mínimo, encontrar no edifício-sede, para cuja concretização tanto se esforçou, um espaço condigno onde relembrar o seu nome. Adeus Elidérico. Adeus, passeios junto ao mar de braço dado com Rosa, a sua companheira de sempre.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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