Aproxima-se o fim do ano com o seu momento de reflexão e apuramento do que se fez e do que ficou por fazer. Alargamos escopo de análise, vamos mais além do ram ram diário, da semana, ou do mês… Tentamos abarcar o ano inteiro no regaço do pensamento e tomar-lhe o peso, de que lado da balança está o saldo? Sob toda a influência new age do stay positive, esforçar-nos-emos por encontrar o ângulo justificatório que nos faça sentir bem, ou, pelo menos, o discurso que possamos debitar aos demais enaltecendo o quão profícuo foi todo o mau que aconteceu pelo muito que se aprendeu. É que hoje em dia, com tanta teoria quântica transformada em literatura de auto-ajuda, ai de quem não se posicionar deste modo. Porém, este esforçado optimismo pode impedir, justamente, a ansiada anagnórise.
Anagnórise no contexto clássico é o momento de reconhecimento em que o herói descobre uma verdade fundamental que transforma a sua compreensão da realidade e de si mesmo. Não seria fabuloso se isto nos acontecesse uma vez por ano?
Porém, para que a anagnórise se dê é necessário despir-se tanto das ideias pré-concebidas, como dos resultados ansiados. Por uma vez no ano, deixemos de tentar controlar ou intervir neste apuramento e acolhamos com coragem o que dele advier.
Vivemos, pois, às cegas, às apalpadelas, num mundo que se altera sem apelo nem agravo, indiferente às nossas angústias, anseios ou alegrias
Tomemos como exemplo o encontro clássico de Édipo com a esfinge. De acordo com o mito grego a Esfinge destruidora foi enviada para Tebas depois de Édipo, sem o saber, ter morto o seu pai – Laio, rei de Tebas. Os campos ficaram devastados, as pessoas aterrorizadas, e a esfinge declarou que não pararia até que alguém decifrasse o seguinte enigma: “Que criatura pela manhã tem quatro pernas, ao meio-dia tem duas e à tarde tem três?” Qualquer um poderia tentar decifrar o enigma, mas quem falhasse seria estrangulado. Se alguém adivinhasse a Esfinge abandonaria a cidade.
Foi então que o regente Creonte, que tanto ambicionava ser rei, se desesperou, e sacrificando a já não tão longínqua coroa prometeu dar em casamento a rainha viúva, Jocasta, e consequentemente, a coroa de Tebas, a quem libertasse a cidade de tão tamanho flagelo. Muitos se atreveram e fracassaram.
O indigente Édipo resolve tentar a sua sorte, e para espanto e alívio dos tebanos, dá a resposta acertada: “o homem”. É o homem quem na manhã da vida gatinha, na adultez caminha sobre as duas pernas e, no entardecer da vida, utiliza uma bengala. Tal como prometido, a esfinge furiosa atirou-se das muralhas de Tebas abaixo acabando por morrer.
Porém, o encontro de Édipo com a Esfinge marca o triunfo da inteligência racional, mas não é ainda o verdadeiro conhecimento de si, não existe ainda anagnórise. Vejamos, Édipo conhecedor/salvador é também Édipo inocente/ignorante duplamente culpável: pelo parricídio do pai provocou a devastação da cidade e agora ao ter de casar com a mãe cometerá um hediondo incesto e gerará filhos-irmãos.
De acordo com a filósofa espanhola María Zambrano (1904-1991), a Esfinge representa não apenas um obstáculo externo, mas o enigma da existência humana. O facto de Édipo decifrar o enigma (o homem) sem compreender o que isso implica em relação a si mesmo reflecte uma cisão entre conhecimento intelectual e reconhecimento existencial. A anagnórise, neste contexto, é retardada: Édipo só chega ao pleno reconhecimento quando descobre a verdade sobre seus pais, a sua origem e as suas ações. Assim, a solução do enigma não encerra o processo de autoconhecimento, apenas o inicia e, no seu aprofundamento, surgirá a revelação trágica da verdade. A tragédia surge da descoberta da própria identidade como fonte de ruína.
O encontro de Édipo com a Esfinge revela os limites do saber humano. A confiança de Édipo na razão e na sua capacidade de resolver enigmas é abalada quando ele enfrenta a verdade trágica sobre si mesmo. O encontro com a Esfinge, portanto, marca um momento de transição: da ilusão de controlo à inevitabilidade da contingência.
No mito clássico, o reconhecimento ocorre em duas etapas: o triunfo do intelecto sobre o enigma da Esfinge (uma falsa anagnórise, ou um reconhecimento incompleto); a verdadeira anagnórise ocorre no momento da revelação do destino, quando Édipo compreende que é o assassino do pai e marido da mãe.
Zambrano amplifica esse processo, interpretando-o como uma metáfora para a busca humana de verdade e para os limites do conhecimento. Ela argumenta que o encontro com a Esfinge e a tragédia de Édipo simbolizam a condição trágica do ser humano: a busca incessante por sentido, mesmo diante da impossibilidade de evitar a dor e o sofrimento que vêm com a verdade.
Quando finalmente as identidades se revelam, Jocasta, descobrindo que tinha casado com o próprio filho enforca-se e Édipo, retira dois alfinetes do vestido da mãe/esposa e com ele vaza os olhos, para fazer corresponder uma cegueira fisiológica à ignorância omniosa em que viveu toda a vida até então.
Tudo isto é tremendo, é avassalador! Ainda assim há que perguntar, o que há de Édipo em cada um de nós?
O que à luz do aqui descrito me parece é que todos nós padecemos de uma cegueira ontológica. Faz parte da nossa condição humana não saber, em cada momento, qual é o nosso lugar exacto, que consequências podem ter as nossas acções ou que alterações se podem dar nas circunstâncias que nos envolvem. Podemos sempre estar mal informados, ser ignorantes quanto a aspectos essenciais de uma questão sobre a qual teremos de actuar. Vivemos, pois, às cegas, às apalpadelas, num mundo que se altera sem apelo nem agravo, indiferente às nossas angústias, anseios ou alegrias. Ainda assim há que viver, há que decidir o melhor possível com o escasso e, quiçá, tergiversado conhecimento a que temos acesso.
Julgamo-nos no topo da evolução e, afinal, somos fracos. A nossa contingência é a nossa maior indigência. Queremos controlar tudo e, afinal, estamos à mercê dos elementos, das circunstâncias e da nossa cegueira ontológica.
Ainda sobre Édipo diz-nos María Zambrano: “o reconhecimento da situação trágica, seja num autor ou numa simples pessoa que acorda, dá-se num certo nível e liberdade, num despertar dessa liberdade numa consciência não desarreigada. Uma consciência que não entrou em ruptura com a alma, nem com as zonas mais infernais, e que não se constituiu em instrumento de poder sobre a realidade.” (O Sonho Criador)
Banhados por esta inexorável humildade façamos agora o balanço, e até a famosa lista de resoluções para o ano que aí vem.
Cafés Filosóficos 14 Novembro 2024 | Casa Álvaro de Campos | Tavira
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*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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