“Hoje o indivíduo explora-se a si mesmo, acredita que isso é realização”.
Byung Chul Han, filósofo contemporaneo
A história humana demonstra que cada civilização resulta de conhecimentos anteriores. A actual “revolução digital” ou “sociedade de informação” colocam, pelas oportunidades e riscos, questões que carecem de análises objectivas e pensamento critico.
Se as alterações tecnológicas permitem uma multiplicidade de aplicações socialmente uteis, foram e são também usadas para coação social, fins agressivos e não legítimos. A novidade recente é o uso de georreferenciação e explosivos em aparelhos de comunicação comercializados para eliminar adversários, a caixa de Pandora.
As inovações tecnológicas sempre induziram alterações geopolíticas, económicas, militares, educativas, transformações físicas no planeta e novas formas de cultura.
Civilizações agrárias e extractivas, evoluíram durante milénios, foram a razão fundamental da pujança das sociedades mercantis mediterrânicas e das revoluções científicas.
A civilização da madeira e carvão de madeira passou no século XVIII à do ferro e do carvão mineral, na Europa queimavam-se 200 milhões de toneladas de madeira e passaram a produzir-se 600.000 toneladas de ferro. A produção de algodão na Índia induziu o aparecimento das máquinas de tecelagem em Inglaterra.
Os combustíveis fósseis provocaram elevado impacto nas produções industriais e no comércio, nas mobilidades humanas e no ambiente, mais de metade das emissões de CO2 para a atmosfera ocorreram nos últimos 30 anos.
Nas últimas décadas surgiu o digital e as sociedades urbanas de centro comercial.
Parte da população que viveu ainda a época pré-digital percebe melhor que está em curso uma transformação com novos valores e formas de cultura, alterações nos comportamentos colectivos, agora ultramassificados.
Dois terços da população mundial, cerca de 5,6 mil milhões, usa diariamente a internet no computador pessoal e telemóveis, utiliza serviços ligados à vida quotidiana familiar, acesso a contas bancárias, pagamentos de habitação, energia, água, impostos, aquisições de bens, … através deles, fornece os dados pessoais a entidades em troca de acessos.
A informação é cada vez mais dominada pela publicidade e a propaganda. A notícia é hoje um produto que vende outros produtos, a propaganda influencia as escolhas eleitorais.
A “revolução” actual é conduzida por gigantes tecnológicos, globais e privados, de difícil controlo político, social ou ético, com escassa transparência das actividades, amorais e lucros astronómicos. As cadeias de negócio e redes globais vivem em guerra pela hegemonia e domínio dos mercados. Google, Apple, Facebook e Amazon, grupo designado por “GAFA”, enfrentam os asiáticos “BAT”, Baidu, Alibaba e Tencent, desenvolvem recolha e tratamento dos dados da população planetária para negócios e outros fins.
Os Estados promovem o digital por razões de eficiência de gestão, mas estão dependentes dos fabricantes de equipamentos e software, só aparentemente têm poderes reforçados.
Cada indivíduo possui um ou mais endereços eletrónicos, os hipolinks determinam a informação enviada e recebida, “landing pages” convertem visitantes em clientes, há ofertas em função dos perfis, convertem-se interesses pessoais em “leads” de conteúdos.
A família e a escola já não educam como anteriormente, os jovens são orientados pela comunicação audiovisual e as redes sociais, a algoritmização domina a vida quotidiana.
Nos sistemas educativos internacionais e nacionais a preocupação é grande quanto a retrocessos na aprendizagem, pelas dificuldades cognitivas, de atenção e concentração, de comunicação e compreensão do real. Discute-se a proibição do telemóvel nas escolas e mesmo o ensino on-line, alguns países já o decidiram.
Em todas as épocas históricas existiu pensamento analítico e crítico, correntes ideológicas e clivagens entre o dogma religioso e o positivismo, conservadores e progressistas. Existe a sobrevalorização do tecnológico com secundarização das humanidades. Preenche-se a função profissional com automatismos tarefeiros e hiperactividade a que chamam “produtividade”. Não há tempo, a “sociedade do cansaço” na análise Byung-Chul Han…
Se a função da cultura é a expressão livre, reflexiva, interrogativa e crítica, a revolução digital poderá ser avanço da humanidade ou a contrarrevolução orwelliana, distopia autoritária com manipulação da informação e uso da privacidade individual. Se deixarmos…
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
Leia também: A Carta de Bruges (1426) sobre a boa governação | Por Jorge Queiroz