Que nunca lhe trema a caneta, que nunca lhe falte a voz, a quem faz do combate à corrupção, e pugna pela ética e a transparência na vida pública, uma trave-mestra do seu comportamento. Foi recentemente publicado um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre o fenómeno da corrupção em Portugal. No ranking das entidades mais corruptas, segundo os inquiridos, os partidos políticos ficam num desonroso segundo lugar, só suplantados pelos clubes de futebol, e seguidos de perto pelas autarquias, pelo governo e pelo parlamento. 62,5% dos políticos são considerados corruptos, e 51,6% dos portugueses consideram que o combate à corrupção é ineficaz, apesar da sucessão de pacotes legislativos das últimas três décadas.
A sucessão de abusos de informação privilegiada, de tráfico de influências, de negócios do Estado que favorecem escandalosamente determinados grupos económicos como é o caso flagrante das PPP’s rodoviárias, a teia de cunhas, favores e conflitos de interesses, a existência de uma Justiça para os possidentes, e uma Justiça para os desfavorecidos. Tudo isso mina perigosamente as bases das instituições políticas do sistema democrático, e favorece a ascensão de movimentos populistas, radicais e extremistas à esquerda e à direita. Em Portugal, não são só os condenados que fogem das prisões. Há muitos criminosos à solta ainda por condenar, que andam há décadas a fugir das grades, gozando, usando e abusando do sistema ultragarantístico da nossa Justiça, de recurso em recurso até à prescrição final.
José Sócrates e a Operação Marquês são o exemplo mais paradigmático e escandaloso das possibilidades que a lei processual-penal confere a quem tem dinheiro para pagar a advogados tão caros como famosos, para escapar a uma condenação. Dez anos já lá vão, num carrossel com mais de 50 recursos vários e incidentes de recusa de juízes e o julgamento ainda nem começou. E outros dez anos se seguirão a uma mais que certa condenação em primeira instância, com recursos para os patamares superiores até chegar ao Tribunal Constitucional e mesmo, suprema hipocrisia, ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em Estrasburgo. Na ficha prisional de Sócrates restarão os 288 dias que passou no pensionato de Évora, por despacho do juiz Carlos Alexandre. E quem é responsável por esta teia jurídica na qual a Justiça tropeça e se enleia? A classe política! Os partidos políticos! Quem mais tem poderes para inverter esta situação?
Já passou o Outono orçamental como todos os anos, apresentaram-se milhares de propostas de alteração, foram aprovadas centenas delas por virtude de alianças espúrias ou de ocasião. Mas teria sido bom que se tivesse dado uma vista de olhos naquilo que é classificado como “despesas excepcionais”, e os portugueses teriam ficado de boca aberta com os milhares de milhões de euros que por ali têm corrido como “empréstimos de m/l prazo” canalizados para empresas como a Parvalorem – a arrecadação onde se acumulam os activos tóxicos resultantes da corrupção no BPN, no BANIF e noutras fraudes financeiras – e que é hoje o maior devedor ao Estado português. Mesmo que se tente considerar que a percepção é uma coisa e a realidade é outra, não se pode ignorar esta situação. Há quem não se sinta incomodado com isto. Eu sinto-me. Há quem não tenha vergonha disto. Eu tenho! E estou convencido de que no nosso País ainda existe uma vasta maioria de gente que partilha este sentimento. De gente séria, honesta, trabalhadora, com noção correcta do que é o interesse público, e que não se revê num exercício oportunista da prática política, seja no governo, no parlamento, ou nas autarquias até à mais humilde das freguesias.
Como querer atrair quadros de qualidade ou novas gerações para a política, se a opinião prevalecente dos portugueses for a de que “só vai para a política quem quer benefícios particulares à custa do bem comum” ou de que “a política corrompe até as pessoas honestas”? Os servidores públicos não devem ser tratados como criminosos em potência, um pressuposto que só ajuda à narrativa extremista de quem quer enfraquecer a democracia. A verdade é que, mesmo que os cidadãos não se revejam no Governo do dia, todos os eles devem rever-se no Estado, nas suas instituições e no seu funcionamento. Mas até lá existe um longo caminho a percorrer.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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