Olhar para a classe política como uma vaca sagrada, um modelo de virtudes, um exemplo de competências, um terreno isento de erros, não passa de utopia. Os homens e as mulheres que um dia decidem consagrar o todo ou parte da sua vida a servir a causa pública, por eleição ou por nomeação, são naturalmente o reflexo da sociedade de onde emanam, com todos os defeitos e capacidades de um ser humano, onde entra também a permeabilidade ou impermeabilidade à corrupção, ao nepotismo, ao conflito de interesses, à falta de ética.
O fenómeno não é exclusivo de Portugal, mas o nosso “ranking” continua lamentavelmente medíocre, apesar das fornadas de legislação, de pacotes de intenções que dificilmente saem do papel no combate à corrupção. Esta existe de baixo acima na estrutura institucional do Estado, das autarquias ao topo passando pela administração pública, mas é na montra parlamentar e governamental que adquire maior relevância e notoriedade. Serve de alimento ao fogo insaciável da comunicação social, com novelas de escândalo, em episódios de investigações, detenções, acusações, julgamentos intermináveis, escassas condenações, gerando um sentimento generalizado de impunidade e injustiça. Sendo que, só uma minoria da classe política está infectada pelo vírus corruptivo, a imagem que passa para o público é a de que os políticos apenas se preocupam com a duração excessiva dos inquéritos que envolvem outros políticos, e muito pouco ou nada com aqueles que envolvam um assalto a uma farmácia, um supermercado ou uma residência de um qualquer cidadão anónimo.
A preocupação central dos partidos políticos não pode ser apenas com o uso abusivo das escutas como meio de obtenção de prova, nem pela violação do segredo de Justiça, quando alguém da elite política é incomodado pelas investigações do Ministério Público, porque a impressão que se transmite aos cidadãos é de que a sua prioridade é evitar que os factos sejam do conhecimento público, quando existem suspeitas de negócios privados com luvas públicas.
A “invasão da privacidade” é tão necessária para investigar uma suspeita de corrupção de um governante ou autarca, como para investigar a combinação de um negócio criminoso entre dois traficantes de droga. Acresce que as escutas telefónicas são legais, e o seu controle passa por uma multiplicidade de procuradores, juízes de instrução e até juízes de tribunais superiores. Fica tudo registado no processo e podem ser questionadas. Mas as escutas são fundamentais para descobrir contactos, redes, combinações, e são importantes quer para o combate ao submundo da droga e da criminalidade violenta, do terrorismo, dos assaltos à mão armada, dos homicídios, ou dos fugitivos das cadeias, quer para os crimes de colarinho branco, da corrupção, que vão da política ao mundo empresarial.
O que a classe política não pode nem deve é passar a imagem ao público, de que só se preocupa com as escutas quando os seus são incomodados, mais interessada em si própria do que no interesse dos cidadãos comuns. De resto, a violação do segredo de justiça é um crime de reduzida importância, segundo o Código Penal, e é uma situação excepcional, porque a lei determina que a regra seja a da publicidade. Os políticos devem preocupar-se com a violação do segredo de justiça quando os jornais detalham ao pormenor um assassínio, e não apenas quando causa embaraços a alguém da política. Outra questão tem a ver com as declarações de rendimentos dos políticos que, no princípio, em 1983, eram entregues no Tribunal Constitucional. Mas eram secretas. Em 1995 ficaram teoricamente acessíveis, mas, na prática, nem o Tribunal Constitucional nem o Ministério Público tiveram meios para sequer as analisar.
Em 2019 criou-se a Entidade para a Transparência, que demorou anos a sair do papel, e quando saiu ficou bem albardada na lei de protecção de dados que exige a fundamentação dos pedidos de consulta. Ou seja, os jornalistas têm de revelar tim-tim por tim-tim, o que querem investigar. Chama-se a isto transparência?…
Em 2012, por indicação de Passos Coelho e aceitação de Cavaco Silva, a saudosa Joana Marques Vidal foi nomeada Procuradora-Geral da República. Uma mulher verdadeiramente independente do poder político, que ajudou a restituir parte da confiança perdida nas instituições. A recente nomeação de Amadeu Guerra para o cargo, por indicação de Luís Montenegro e aceitação de Marcelo Rebelo de Sousa, reafirmou esse espírito de serviço e esse compromisso com a independência da Justiça e a gestão empenhada e competente do Ministério Público, apesar da tentativa de um sindicato de interesses que tudo fez para o evitar. Chega ao lugar com um capital imenso de bom senso, capacidade para agir, pensar, dialogar. Foi com ele que se desencadearam muitas das investigações de processos judiciais ainda em curso. É institucional e independente, um exemplo de integridade. Oxalá não desiluda. Mas dele se espera, também, que não se continue a fazer das buscas e das investigações, sejam a políticos, sejam a quem for, um “reality show” à borla para as televisões se banquetearem. Exigem-se mais resultados e menos espectáculo.
Nas eleições de Março último, de forma algo surpreendente, o programa eleitoral da Aliança Democrática era o mais completo de todos em matéria de transparência e combate à corrupção. No discurso de tomada de posse, o novo primeiro-ministro considerou a ética, a transparência e o combate à corrupção no top-2 das suas prioridades. Montenegro reafirmou esse compromisso no quinto capítulo da Moção de Estratégia “Acreditar em Portugal”, que fez aprovar no recente congresso do seu partido. Coerentemente, o programa do Governo acolheu essas propostas e agora, o que se espera e se exige, é que nada disto fique no papel, que não seja apenas mais um pacote negociado entre pares na Assembleia da República, mas que haja consequências que o povo português veja e compreenda. Que saiba ouvir os investigadores e as organizações da sociedade civil que há anos têm trabalho feito nesta área.
Fazendo uma matriz com as propostas eleitorais de todos os partidos, constata-se que a maioria das medidas do compromisso eleitoral da coligação vencedora, podem encontrar viabilização à sua esquerda ou à sua direita. Não há desculpas. Só não se concretizarão se houver quem falte à palavra.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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