O pior aconteceu. A América mudou mesmo. O distanciamento entre as duas partes do Atlântico Norte consumou-se. Não é conjuntural e apenas indício de mais um ciclo eleitoral. É mesmo alteração cultural, geracional e emocional que determina esse afastamento. Os EUA olham para a Europa como para uma relação cara e desinteressante. Há muito mais mundo para além da história comum de valores e, essa, deixou de ser chão para uma nova era de relações complexas, em que todos rivalizam com todos.
Neste cenário de um mundo fragmentado, imprevisível, a Europa já perdeu. Tem de se refazer, a partir de uma economia aberta a todos os choques assimétricos provocados por um novo mundo tendencialmente protecionista, com uma liderança política e económica bastante fragilizada. Está decretado o fim da globalização liberal e refeito o conceito de friendshoring – relações preferenciais com países amigáveis – a partir daquilo que realmente prevalece – a geopolítica. Os interesses espezinham os valores.
A NATO está a caminho do desnorte. Falta mesmo uma derrota na Ucrânia para descalibrar a bússola. A viragem americana era mesmo o argumento que faltava para se deixar cair essa barreira. A Europa está sob ameaça. Tem de se refazer, a partir de um novo conceito de defesa comum, recompor a sua indústria bélica, modernizar a sua força militar e assegurar um recrutamento seletivo. A guerra é, agora, tecnológica.
Os custos de contexto para a economia e a vida dos europeus são tremendos. Os ciclos de políticas europeias acabam, quase sempre, em oportunidades perdidas.
Draghi produziu um relatório de evidências. Para quem acompanha matérias europeias não encontra nada de surpreendente na sua análise e propostas. O que é bom. Significa que leu a realidade sem a esconder em nenhuma das suas dimensões. A Europa está velha e anafada, com pouca capacidade para mudar. Vive de rendimentos e da sua antiga posição de maior player económico global (valor gerado entre fluxos de importações e exportações). Há muito que deixou de investir na geopolítica e concentrou-se na geoeconomia. Ainda tem um peso enorme nos bens transacionáveis convencionais (por exemplo, na produção agroalimentar). Mas perdeu o desafio da nova economia da informação. E já não tem nenhuma zona de influência. Está cada vez mais só.
Neste novo ciclo, a União Europeia tem de repensar quase tudo. Precisa de tempo, que é o que mais falta para este enorme desafio de adaptação. Este desafio tem três dimensões estratégicas: (1) refazer a sua posição geopolítica, com uma nova política de vizinhança virada para África e mais realismo na sua relação transatlântica e com a Ásia-Pacífico; (2) manter a liderança na economia da descarbonização; (3) não perder o “foguetão” da digitalização.
Mas o maior dos desafios da União Europeia, que só dela depende, é repensar o seu modelo burocrático de decisão e aplicação das políticas, que geralmente “captura todas as boas ideias” e limita a inovação. Qualquer lei europeia para ser aprovada leva pelo menos dois anos. A sua aplicação nacional é cheia de “teias e peias”. As administrações públicas estão sobrecarregadas. Os custos de contexto para a economia e a vida dos europeus são tremendos. Os ciclos de políticas europeias acabam, quase sempre, em oportunidades perdidas.
A Europa sai perdedora. Está em tempo de se refazer. Será que vai a tempo?
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