É a avó algarvia de Camões. Chamava-se Guiomar Vaz da Gama, casada com Antão Vaz de Camões, e era parente dos Gamas do Algarve.
A ligação familiar está documentada, mas continuam a pairar no ar perguntas sem respostas. Por exemplo: quem foram os pais de Guiomar ou que tipo e grau de parentesco tinha ela com a família do almirante da Índia? O que se sabe é apenas o que dizem os primeiros biógrafos do poeta, Pedro Mariz e Manuel Severim de Faria.
E tudo se resume a isto: que “Antão Vaz de Camões casou com Guiomar Vaz da Gama, parente dos Gamas do Algarve, vindos do Alentejo, da família do grande navegador”. Uma versão que foi sendo replicada sucessivamente por outros historiadores e genealogistas ao longo dos séculos. Sem um ponto a mais, a narrativa ficou assim parada no tempo. Como dizia Faria de Sousa, “quien lo entendiere mejor me lo diga”.
Que os Gamas passaram do Alentejo para o Algarve e por cá deixaram descendência, é um dado adquirido. O mais notável deles, Vasco da Gama, de família com origens em Sines e na Vidigueira, casou com Catarina de Ataíde, uma algarvia filha de Álvaro de Ataíde, alcaide mor de Alvôr.
O primeiro a colocar o nome de Guiomar como avó de Camões, e a ligação desta a Vasco da Gama, foi Pedro Mariz, numa edição de Os Lusíadas de 1613, comentada por Manuel Correia. Um e outro foram contemporâneos de Luís de Camões e o último seu amigo pessoal, “persona de credito e de la idade do poeta e su amigo”, como diz Mariz. Ninguém como eles e M. Severim de Faria, estaria em melhor posição para o afirmar com tal propriedade.
À excepção do que eles disseram – mesmo com algumas imprecisões -, muitos aspetos da vida do épico português persistem envoltos em nuvens de fumo que têm levado ao engano e, não raras vezes, a muitas fantasiosas efabulações. Mas graças a eles, há coisas que são hoje pacificamente aceites: Luís Vaz de Camões era descendente direto de Vasco Pires de Camões, seu trisavô, fidalgo galego que passou a Portugal ao serviço do rei D. Fernando, onde ganhou fama e fortuna. Mais tarde, por ter alinhado ao lado de Castela contra D. João I, em Aljubarrota, caiu em desgraça, foi feito prisioneiro e tudo perdeu.
Do seu casamento com Maria Tenreiro, vieram os descendentes da família mais próxima do poeta. Primeiro os seus bisavós, João Vaz de Camões e Inês Gomes da Silva, pais de Antão Vaz de Camões, seu avô, dono de um morgadio em Évora, que veio a casar com Guiomar Vaz da Gama. Por este facto o poeta é neto, por varonia, de Guiomar Vaz da Gama. Os seus pais foram Simão Vaz de Camões e Ana de Macedo.
Corria-lhe, pois, nas veias, sangue de um fidalgo vindo da Galiza, mestre no manejo das armas e virtuoso na poesia trovadoresca, e de uma ilustre avó algarvia. E terá sido da fusão dessa tradição da poesia trovadoresca, herdada do trisavô, com o cancioneiro popular do Algarve, transmitida pela avó, que lhe terão chegado as influências refletidas de forma clara na sua obra poética.
Mas vale a pena contar que há quem reclame ter supostamente encontrado a chave para o enigma, ligando Guiomar a uma família e aos seus pais. Trata-se do controverso historiador e genealogista, A. Mascarenhas Barreto. Diz ele que Guiomar Vaz da Gama era filha de Aires da Gama e de Mécia Alves Garcia (Bocanegra), o qual, descendendo de Álvaro Eanes da Gama e da algarvia Maria Esteves Barreto, seria irmão de Estevão da Gama, trisavô de Vasco da Gama.
Aceitando-se esta tese – com pouco consenso entre os genealogistas – , Luís Vaz de Camões e o navegador da Índia, seriam primos em terceiro grau. Além disso, confirmava Guiomar como parente dos Gama do Algarve e avó do poeta. Nesta longa discussão poderia ainda caber outro ramo dos Gamas, cujo nome derivou mais tarde no apelido Rua, com ligações ao Algarve e a Loulé. Mas também este caminho não parece conduzir a lado algum e muito menos à família de Guiomar.
Se a ligação de Vasco da Gama ao Algarve resultou, para além de algumas ações de fiscalização da costa, do seu casamento com Catarina de Ataíde, importará realçar também que uma outra mulher homónima, filha de Francisco da Gama e neta de V. da Gama, é dada como prima ou parente do poeta e sobrinha de Manuel de Portugal. Este foi um dos grandes amigos e confidentes de Camões nos amores do Paço. Não escondia a sua paixão pela algarvia Francisca de Aragão a quem Camões dedicava exaltantes rimas poéticas, escrevendo algumas a pedido do amigo.
E aqui entra outra ligação de Camões ao Algarve.
Francisca de Aragão, que veio a casar com Juan Borja, embaixador de Espanha em Lisboa, era filha de Nuno Rodrigues Barreto, alcaide mor de Faro e senhor do morgadio de Quarteira. O seu tio, Francisco Barreto, foi governador da Índia e a sua relação com o poeta terá sido algo conflituosa. Camões, mestre na sátira mordaz, desatou a denunciar em verso os disparates na Índia, nomeadamente a decadência dos valores portugueses e a corrupção reinante no seio da nobreza e da elite dirigente. Os Barretos não lhe perdoaram e Camões foi mandado, primeiro para um exílio dourado em Macau e, mais tarde, regressado à Índia, não demorou até que fosse preso. A vingança suprema veio de Pedro Barreto, governador de Sofala, que deixou o poeta em Moçambique sem meios para regressar ao país. Valeu-lhe a ajuda de uns amigos que seguiam a bordo e entre eles juntaram o dinheiro para lhe garantir a viagem.
Como se sabe, o poeta não ardia no fogo de um amor só. As mulheres foram a sua fonte inesgotável de inspiração e ele com a sua arte de cantar o amor em verso, era um galante sedutor e o mais disputado pelas donzelas da corte. Mas, como dizia Gil Vicente, “a corte era um mar perigoso onde pesca muita gente”, e a inveja mais o descuido do poeta, que nem sempre tratou de proteger o nome das suas musas, determinaram a sua sorte. Camões acabou por ser banido do Paço e desterrado para o Ribatejo e depois para longe da pátria.
Antes do seu exílio de 17 anos no oriente, o autor de Os Lusíadas trocou os desenganos dos seus dias atribulados na corte, pela vida de ação e feitos de armas em Ceuta. E como escreveu Teófilo Braga, “na partida para África, parece que a nau aferrou no Algarve, junto a Vila Nova de Portimão, no sítio da Ribeira de Boina”, que ele cantou desta forma: “Por meio de umas serras mui fragosas,/Cercadas de silvestres arvoredos,/Retumbando por ásperos penedos,/correm perenes águas deleitosas/Na Ribeira de Boina, assim chamada,”/celebrada/ porque em prados/esmaltados/com frescura/de verdura,/Assi se mostra amena, assi graciosa,/que excede a qualquer outra mais fermosa”…
A canção não deixa dúvidas quanto à sua presença no morgadio com aquele nome – ou de Santo António dos Casais – pertença de Isabel Coutinho, filha de Fernando Coutinho, bispo de Silves, casada com o alcaide mor da cidade, Rui Pereira da Silva. Também aqui T. Braga coloca Pereira da Silva e Diogo da Silva, seu irmão, alcaide mor de Lagos, como seus primos ou parentes. Há mesmo quem afirme que Pero Vaz de Camões, seu tio, também se encontraria por esses lados na mesma altura.
Se não tinha relações de parentesco com os Silva, a verdade é que um filho do alcaide de Silves, Jorge da Silva, era amigo de Camões e seu companheiro de farras nas noites lisboetas e frequentador como ele dos salões da corte. Diz-se que Jorge não escondia uma secreta paixão pela Infanta Dª Maria e que isso o terá levado a refugiar-se longe do perigo, para evitar um final de vida no pelourinho real. Terá sido na Ribeira de Boina que Camões o foi encontrar.
Versão diferente é apresentada pelo autor e genealogista algarvio, Nuno Campos Inácio, que no seu livro “História do Condado de Vila Nova de Portimão”, diz o seguinte: “O mais razoável é que a presença de Camões no Algarve, não esteja relacionada com o tio lacobrigense ou os eventuais primos de Silves, mas sim com alguém que lhe estaria muito mais próximo. Luís Vaz de Camões frequentava a corte onde D. Francisco de Castelo Branco, Senhor de V.N. de Portimão, era camareiro-mor e por onde também andaria o seu filho Martinho”.
Nuno Inácio invoca o gosto dos Martinhos pela poesia, para admitir uma aproximação a Camões como se “fossem amigos”. E adianta ser “concebível que D. Martinho, deslocando-se a Portimão para tomar posse informal do seu Senhorio, se fizesse acompanhar pelo amigo”.
O autor destaca a existência de prova documental a ligar os dois homens: “O único exemplar sobrevivente da primeira edição de Os Lusíadas encontrava-se no espólio de D. Martinho de Castelo Branco, entre os seus bens que regressaram a V.N. de Portimão, após o seu falecimento em Alcácer Quibir”.
Em conclusão, não parece normal que um homem que partira para uma campanha arriscada de guerra em África levasse consigo como bíblia, uma obra de poesia épica na sua bagagem de combate. O que só se justifica pela amizade e admiração que tinha pelo autor de Os Lusíadas.
Luís Vaz de Camões, sem um trapo para se cobrir, faleceu em Lisboa em 1580, e foi sepultado em campa rasa na igreja de Sant’Ana, em Lisboa.
Fontes: ”Rimas Várias de Luís de Camões”, Pedro Mariz; Discursos Vários Políticos”, M. Severim de Faria; “Camões”, Teófilo Braga; “História do Condado de V.N de Portimão”, Nuno Campos Inácio; outras.