Maria João Andrade, professora de Português no ensino básico, já não estranha quando se depara com um ‘k’ em vez de um ‘que’, abreviaturas em vez de palavras completas, vírgulas e outros sinais de pontuação totalmente ausentes ou postos de forma aleatória. Nas aulas pede sempre aos alunos que tragam um livro e leiam durante 10 minutos, antes do início das atividades. Mais do que o contacto permanente com o digital e a comunicação escrita em formato abreviado, acredita que é a falta de hábitos de leitura que faz com que tenham “muita dificuldade em escrever”. “Leem pouco e nem sequer é porque trocam pela televisão. Levam a vida nos computadores e telemóveis. Para muitos, aquele é o único momento em que leem um livro”, descreve a professora.
Desde o envio do primeiro SMS, em 1992, e da generalização dos telemóveis, chats e redes sociais (do Hi5 ao Instagram e ao TikTok) que a escrita assumiu novas formas. Mais colada à oralidade, mais abreviada (até porque, no início, quantos mais carateres mais cara saía a mensagem), com muito menos preocupações de correção, mais símbolos e emojis e menos letras.
“Os textos que os mais jovens escrevem são multimodais, têm letras e imagens e afastam-se de estruturas frásicas e formas verbais mais complexas. É um modo diferente de abordar a linguagem, mais reduzida ao essencial e mais próxima do oral. Nessa redução ao essencial, caem a pontuação e as letras maiúsculas, por exemplo. Neste sentido, podemos dizer que há um empobrecimento da fraseologia. Escrita e oral”, considera Filomena Viegas, da Associação de Professores de Português.
Outra característica é a omissão de verbos e artigos enquanto falam, explica a docente. No 1º ciclo, por exemplo, isso é cada vez mais comum. “Professora, posso casa de banho?” ou “mãe, posso gelado?” são exemplos de construções frásicas que parecem estar a tornar-se moda.
Nas mensagens escritas que os jovens trocam constantemente é comum omitir vogais (td em vez de tudo), encurtar palavras usando a letra com um som semelhante (‘x’ em vez de ‘ch’), eliminar artigos e usar abreviaturas. Os sentimentos não se descrevem, expressam-se através de emojis. E a entoação consegue-se prolongando as palavras: “olaaaaaaaa”, “ajuda-meeeeee”.
Curto e simples
Mas será que este tipo de escrita está a empobrecer o Português? “A língua está sempre a mudar. Há períodos históricos em que as mudanças são mais visíveis ou aceleradas, e é isso que parece estar a acontecer devido à conjunção de vários fatores, nomeadamente da generalização de uma escrita rápida e informal no digital, associada a uma redução dos hábitos de leitura. Isso está a resultar numa escrita com estruturas sintáticas mais simples e diretas”, considera Antónia Coutinho, investigadora do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa.
A linguista ressalva, no entanto, que muitas destas alterações se circunscrevem a contextos específicos, como a escrita no digital, e não correspondem necessariamente a mudanças na língua. Tal como o “código” de abreviaturas usado nos telegramas de antigamente não contaminou a escrita formal.
Ainda assim, Antónia Coutinho admite que venham a ser integradas na língua algumas alterações, por exemplo no uso de maiúsculas ou na pontuação. “Pode acontecer que daqui a alguns anos acabem por se estabilizar formas que hoje não são convencionais, como os dois pontos seguidos de fecho de parêntesis (sorriso). O ponto de exclamação, que agora nos parece normalíssimo, só foi introduzido no século XV.”
Para a investigadora, este tipo de alterações não é preocupante. Já a aproximação da escrita à oralidade pode, efetivamente, provocar um “empobrecimento da língua”. E até ter implicações na capacidade de raciocínio. “A escrita não é imediata, como a oralidade, requer abstração e exige reflexão. Na escrita formal escrevemos, apagamos, voltamos atrás, corrigimos. Se a escrita se aproxima da oralidade perde esse elemento, que é muito importante para o desenvolvimento cognitivo. A simplificação da linguagem e a simplificação do pensamento acabam por estar associadas.”
Noélia André, professora de Português no secundário, testemunha-o diariamente. “Como é tudo muito rápido no mundo digital onde passam a vida, os alunos tendem a ser muito sintéticos e têm dificuldade em produzir textos longos mais analíticos ou argumentativos”, descreve esta professora da Escola Raul Proença (Caldas da Rainha), que costuma ser chamada para corrigir exames de Português.
A transposição da oralidade para a escrita reflete-se na ortografia. “O verbo estar aparece como ‘tar’. Ou ‘tivesse’ no lugar de estivesse. E também é recorrente a falta de pontuação. Porque escrevem como falam”, diz.
As camadas da língua
Paradoxalmente, a internet fez com que a “escrita seja hoje muito mais importante do que alguma vez foi”, nota Marco Neves, professor universitário e autor de várias obras sobre a língua portuguesa. Em muitos casos os jovens até interagem mais pela escrita do que presencialmente, porque se habituaram a conviver à distância. O problema não reside tanto na internet, mas sobretudo na falta de hábitos de leitura, que empobrece a escrita e acaba por se refletir negativamente na redação de um texto académico ou numa candidatura a um emprego, por exemplo. Mais do que na ortografia, é na pontuação e na construção frásica que se notam as dificuldades. “Quem tem facilidade na escrita mais formal terá uma vantagem competitiva muito grande”, sublinha.
De acordo com professores do ensino básico e secundário ouvidos pelo Expresso, a generalidade dos alunos não transpõe para os textos da escola a linguagem própria do digital. “Um aluno normal faz a distinção entre estas diferentes formas de escrita. Mas a velocidade com que encaram as suas interações e o facto de não se preocuparem com a correção e a revisão do que estão a escrever está a gerar dificuldades na produção escrita. Estas competências têm de ser trabalhadas em sala de aula”, sublinha o vice-presidente da Associação de Professores de Português (APP), João Pedro Aido.
Nos últimos dois anos, em que as próprias plataformas digitais foram usadas como substituto da escola presencial, acentuaram-se as dificuldades, alerta: “Alguns problemas de vocabulário, ortografia e sintaxe agravaram-se. E também algumas situações de compreensão e sobretudo expressão oral, que levaram muitos alunos a precisar de terapia de fala.”
A pandemia também aumentou exponencialmente o tempo que crianças e jovens passam a ver vídeos no YouTube, Instagram e TikTok, muitos deles falados em português do Brasil. De tal modo que se vulgarizaram entre os mais pequenos termos como banheiro (casa de banho), ónibus (autocarro), grana (dinheiro), grama (relva) ou geladeira (frigorífico). “O português do Brasil generalizou-se, não só nas expressões mas no próprio sotaque. Há crianças que não sabem o que querem dizer várias palavras em português de Portugal, mas apenas no seu equivalente brasileiro”, diz Dina Morais, professora do 1º ciclo no Agrupamento de Escolas Braamcamp Freire, em Odivelas.
Já antes, o inglês se tinha imiscuído de forma transversal. “Uma língua é feita de camadas. Temos muitos termos que são adaptações do francês e se recuarmos encontramos muitos que vêm do árabe, por exemplo. O processo de integração de estrangeirismos é normal em qualquer língua. A questão é que agora há áreas inteiras de trabalho, como a tecnologia, a gestão ou os recursos humanos, em que o inglês se tornou língua franca e ganhou um peso excessivo”, argumenta Antónia Coutinho.
A verdade é que o debate sobre as alterações na linguagem está longe de ser um exclusivo nacional. E até o inglês, o grande exportador de palavras, está a transformar-se. No livro “Because Internet”, publicado em 2019, a linguista norte-americana Gretchen McCulloch descreve como o digital está a mudar a linguagem e a comunicação “mais rapidamente do que alguma vez aconteceu” e um pouco por todo o mundo: “As comunidades online estão a espalhar novos jargões a uma velocidade estonteante, enquanto formatamos as nossas conversas à limitação de carateres e trocamos argumentos nas redes sociais sob a forma de respostas rápidas. A internet não é apenas um motor de transformação linguística — é também um enorme laboratório de palavras não editadas e não filtradas, onde vemos a linguagem a evoluir em tempo real.”
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL