Para falar do prazer que me deu descobrir e ler este livro agora publicado pela Tinta da China, numa belíssima e luxuosa edição, de grande dimensão, assumindo-se em simultâneo como um documento etnológico, um hino ao resgate da cultura local, um álbum de fotografias e uma espécie de postal dos produtos marítimos algarvios, tenho de fazer um intróito em que recapitulo as memórias da minha infância que estão fortemente ligadas a esta área geográfica, ao mar e, consequentemente, a esta obra.
Tendo crescido junto ao mar (pois os meus avós tinham uma casa na ilha de Faro – se bem que na verdade se trate de uma restinga – e eu era aí despejado pelos meus pais nos finais de Junho, ou às vezes no início de Julho – logo depois do meu aniversário – para ser recolhido nas primeiras semanas de Setembro quando as aulas estavam prestes a começar), vivia, portanto, como um índio da meia-praia, sem roupa (à excepção de uns calções de banho), sem calçado, sem preocupações, durante cerca de três meses, em que a rotina consistia em tomar o pequeno-almoço ansioso para chegar à praia, ainda deserta, estrear o areal limpo de pegadas e caminhar até à Quinta do Lago, local onde desemboca a ponte de madeira… para depois alternar entre leituras estendido na toalha e revigorantes mergulhos. Seguia-se o almoço de peixe com batatas, após o qual se esperavam as fatídicas três horas de digestão, durante as quais se podia dormir a sesta (nem por isso…), jogar monopólio (com as netas da vizinha da casa do lado, filhas de emigrantes de franceses) ou ler. Pelas 16 horas, a minha avó pegava num farnel, voltávamos para a praia, de onde só regressávamos quando o sol quase se punha e se levantava aquele vento quente de levante, enquanto me enxaguava na bica em frente à casa (na altura ainda não havia água canalizada que chegasse à casa) para depois jantarmos peixe com batata ou batata com peixe (para ir variando a dieta alimentar).
Era esse o único momento do dia em que o televisor era destapado e ligado, ver a Tieta do Agreste (sim, as novelas ainda eram brasileiras, na altura) ou ir para a rua brincar com os filhos dos pescadores das casas ao lado. Retomando o assunto em mãos, guardo com enorme carinho as memórias dos pescadores a puxar as redes cheias de peixe-rei que brilhava como prata, da chegada dos homens nos seus barcos de madeira com motor, que depois empurrávamos para a areia, sendo, depois, o peixe vendido no mercado de Quarteira ou de Faro ou deixado na areia a quem o quisesse levar (ainda era a época da abundância), das mulheres a lavar o lingueirão, dos passeios pela Ria Formosa quando vazava e onde eu gostava de tentar descobrir peixes retidos em latas ou pneus, que ficavam encalhados nos regos de água como detritos que a ria se recusava a levar mais longe, apenas para de vez em quando ser enxotado por algum homem mal-encarado que me acusava de andar a pisar o viveiro de amêijoas (sempre me transcendeu que se demarcassem pedaços de terreno na ria como quem delimita uma horta), dos homens a limpar os seus aparelhos de pesca onde no fio de nylon, brilhante como prata e invisível como um fio de baba, enrolado em grandes novelos se ia enfiando o isco nos anzóis. Lembro-me nitidamente como a minha avó recebia agradecida o peixe que os pescadores lhe traziam, quando sobrava, resmungando no caminho para a despensa que já tinha poucas batatas mas que tinha de retribuir, enquanto as enfiava num alguidar que me incumbia de oferecer em troca…
O livro
A ideia deste livro de Maria Manuel Valagão, Nídia Braz e Vasco Célio parte de uma ideia desenvolvida durante o processo de elaboração do livro Algarve Mediterrânico. Tradição, Produtos e Cozinhas (2015) também da autoria de Maria Manuel Valagão e Vasco Célio, e com Bertílio Gomes. Bem estruturado, de leitura acessível, em linguagem escorreita, que recolhe depoimentos de «homens e mulheres que fizeram a sua vida no e com o mar» (p. 15), fixa a vida dos produtos do mar (peixe, marisco, sal) e da memória da pesca, com os barcos, os aparelhos de pesca, os usos e costumes marítimos, recolhendo as vozes da memória individual e colectiva no Algarve mediterrânico e atlântico.
Foi através do mar que Portugal se aventurou ao mundo, e ainda hoje o país tem uma vasta plataforma marítima, fonte de alimento e riqueza. Mas é sobretudo pelo Algarve dentro que o mar se estende e se faz sentir, nessa «extensa costa (…) ponto de partida, de chegada de outros povos e também de regressos», onde até ao século XX era mais fácil a «aproximação pelo mar e pelos rios Arade e Guadiana» (p. 23). Aqui «mar e terra entrelaçam-se» (p. 25) na usual prática (como a minha avó o confirma) de se trocar produtos da terra por produtos do mar ou na forma como nas papas de milho (o xarém agora tão em voga nos restaurantes quando antes era uma comida de pobres) se incluem os bivalves, como berbigão, conquilhas ou amêijoas, e o toucinho frito. Se a sotavento a costa estende-se num cordão arenoso, com várias aberturas, que criam a ilusão de ilhas, a barlavento existem práticas arcaicas e intimamente ligadas como a pesca à linha nas falésias da costa rochosa, e nesses trilhos descobriam-se enxames de abelhas bravas alojados na rocha calcária cujos favos de mel eram recolhidos e o mel generoso escorria pelas rochas até ao mar. A maritimidade já vem dos tempos pré-históricos, como o comprovam os concheiros, depósitos de cascas de mariscos diversos e as sepulturas dos primeiros habitantes da costa vicentina decoradas com camas de percebes. E essa maritimidade revela-se das formas mais inesperadas, quer no conhecimento íntimo que o povo ainda hoje tem das marés, como num surpreendente farol integrado na torre sineira de uma igreja. O Algarve marítimo é aqui desvendado, desde os tanques de salga das grandes estações arqueológicas, aos portos e barras, cujas areias móveis abrem e fecham, aos faróis dos cabos, aos estaleiros navais, às indústrias transformadoras de peixe, passando pelas marinhas, agora conhecidas por salinas, até à Ria Formosa (Parque Natural de singular beleza) e a Ria de Alvor, cujos ecossistemas complexos são «profusamente povoados por espécies animais e vegetais» (p. 47). Este livro retrata as comunidades marítimas nas suas vozes e vidas, transcritas em diversos relatos, ao mesmo tempo que transmite a informação mais diversa, e bastante preciosa, como descobrir que o peixe de viveiro pode ser mais saboroso do que o selvagem.
O livro, dividido em 5 partes, explora a relação entre o mar, a maritimidade e a paisagem em «Paisagem, recursos e portos»; os recursos do mar e das rias através dos habitats e climas em «Pesca e Pescadores»; as memórias da pesca do bacalhau e do atum em «Pescas lembradas»; o percurso do peixe desde o mar até ao consumidor em «O peixe já em terra», outrora com as antigas práticas de venda como agora nas lotas e mercados, a conservação tradicional do peixe com a salga e a secagem, e um capítulo sobre as indústrias conserveiras, cujas fábricas ainda povoam a paisagem algarvia e as grandes chaminés dessas antigas fábricas têm sido integradas em novos edifícios; e em «Última vida do peixe» transcrevem-se algumas receitas transmitidas por boca. Por fim, a concluir, dá-se voz à modernidade através do testemunho de três personalidades – Pedro Bastos, Bertílio Gomes e Dieter Koschina – que revelam como o peixe afinal puxa carroça e é uma matéria-prima muito fácil de recriar e de trazer à mesa dos portugueses e dos estrangeiros, pois «o bom peixe, sozinho, já é o cozinheiro» (p. 19), ao mesmo tempo que se questionam sobre os actuais riscos ambientais e apontam caminhos para o futuro do peixe e dos mares. Existe ainda um Anexo que reúne informação sobre muitas das espécies de peixe e marisco disponíveis nos mercados, um glossário marítimo e um útil índice das várias receitas apresentadas no livro.
Este livro não só promove a preservação de todo um legado cultural, com as vozes da maritimidade e do seu povo, para que perdure nas gerações vindouras, como pretende estruturar a identidade algarvia num mundo em mudança no sentido da globalização e onde a biodiversidade marítima, de que dependemos, corre sérios riscos como se tem vindo a ver com as mudanças climatéricas ou as ilhas de plástico flutuante que poluem os oceanos.
Os autores
Maria Manuel Valagão é doutorada em Ciências do Ambiente, investigadora em Sociologia da Alimentação e Ambiente e é actualmente investigadora do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição – Patrimónios, Artes e Culturas da Universidade Nova de Lisboa. Nídia Braz é doutorada em Engenharia Agroinsdustrial, professora na Escola Superior de Saúde da Universidade do Algarve e investigadora em Ciência de Alimentos. Vasco Célio é um fotógrafo baseado no Algarve.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Fevereiro)