A dor significa que algo no nosso organismo e no nosso mundo psíquico não está bem. Tem um carácter subjectivo, sempre difícil de classificar quanto á sua intensidade, atendendo ao facto de que cada pessoa pode interpretar uma mesma dor de forma diferente e com maior ou menor carga psíquica. Pense-se em certas doenças reumáticas que provocam sofrimento momentâneo, de forma tão imprevista, que o doente fica imobilizado, podendo voltar ao estado normal tempos depois, quem assiste a estas situações, por ignorância ou por malevolência poderá até pensar que se trata da representação.
Ocorreu-me esta consideração preambular perante o ineditismo desta obra “Uma dor tão desigual”, contos onde estão envolvidos escritores como Afonso Cruz, Dulce Maria Cardoso, Gonçalo M. Tavares, Joel Neto, Maria Teresa Horta, Nuno Camarneiro, Patrícia Reis e Richard Zimler. Escreve-se na contracapa de que trata de um desafio lançado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses para que estes oito autores explorassem as fronteiras múltiplas e ténues que definem a saúde psicológica e o que dela nos afasta. São histórias de perda, solidão, fraqueza e delírio, mas também de esperança e humanidade. São relatos de gente que podíamos conhecer e talvez conheçamos, histórias íntimas e ricas de homens e mulheres como nós. Uma dor tão desigual, Teorema, 2016.
O livro aparece no contexto da campanha de sensibilização que a Ordem dos Psicólogos leva a cabo sobre a saúde psicológica, sobre a consigna “Encontre uma saída” (sítio encontreumasaida.pt). Campanha com componentes diversos, criou-se um filme que passou na televisão, no sítio podem obter-se informações sobre os diversos tipos de perturbações e no sítio apresenta-se um mapa georreferenciado dos psicólogos portugueses, onde é possível saber qual o profissional mais perto ou mais conveniente para a pessoa que procura ajuda.
O que é esperável encontre nestes contos? Afonso Cruz fala-nos no museu de inutilidades, por ali há lixo, mas também se fala em autores esquecidos, livros desinteressantes ou marginais, e do museu do sentido da vida e se filosofa sobre o absurdo, o mundo kafkiano, o autor diz em determinada altura que o que pisamos tem uma luz própria e que nos faz falta pessoas como estes construtores de museus, capazes de encontrar entre os destroços das nossas vidas um motivo de ressurreição, da banalidade fazer emergir o extraordinário.
Dulce Maria Cardoso fala-nos num mentiroso compulsivo, um transtornador de afectos, de quem nos vemos forçados a fugir, e observa: “É difícil amar alguém que use a vida como quem constrói um poema, alguém que finja tão completamente que chegue a fingir que…”. Na verdade, é insustentável viver com a mentira e a dúvida que ela suscita.
Ao doente Josef que se desdobra em desenhos, delirante. Há Jaca, um ser impreparado, talvez bipolar. Marta tem vertigens e pressente acenos de pássaros que lhe atravessam permanentemente a depressão, aguçada em monogamia, a ponto de matar a filha, Cassandra. Há, inevitavelmente, alguém que encontre lógica para experimentar o suicídio, há uma mulher apoquentada que consulta um profissional, o marido partiu, desdobram-se as peripécias, o marido voltou e ela comenta: “É como se estes três meses e pouco não tivessem existido. Os meus filhos parecem-me estrangeiros. Tenho-me dedicado ao Jaime, a ter tempo para nós, na segunda-feira até fomos almoçar. Fui ter com ele ao centro comercial perto do escritório dele e comemos uma salada. Não lhe perguntei nada. Até agora não o quis agredir. Fizemos amor uma única vez, eu chorei, ele saiu para a cozinha para fumar um cigarro (…) Acha que isto pode voltar a acontecer? É que eu não vou conseguir sobreviver a outro choque. A doutora o que acha? Não vou desvalorizar o sofrimento, magoou-me muito. Creio que ele sabe. Estava aqui a ponderar e, se não se importa, creio que marco nova sessão para a semana. O Jaime não precisa de saber e até pode ser que me faça bem. Que acha?
Richard Zimler oferece-nos uma obra-prima, o sofrimento de um judeu idoso que passou por provações no gueto e demora a abrir a alma ao seu próprio filho. Mas quando se dá o embate e a descoberta da verdade, a vida que ainda há para viver ganha mil oportunidades.
Um livro de contos onde temos muito a aprender em todos estes domínios da saúde psicológica carregados de preconceitos, de estigmas, de quartos escuros. Um livro que nos pode ajudar a encontrar saídas, porque também somos portadores, doa a quem doer, de histórias de perda, solidão, fraqueza e delírio, mas também de esperança e humanidade.
* Assessor do Instituto de Defesa do Consumidor e consultor do POSTAL