Apesar das imagens originalmente digitais compostas por “zeros” e “uns”, interpretadas por programas e equipamentos informáticos e que podem ser vistas instantaneamente em monitores/visores e multiplicadas infinitamente à velocidade da luz e de estarem simultaneamente em qualquer lugar, criando assim um novo paradigma de produção, reprodução, divulgação da imagem que veio alterar de forma radical os sistemas analógicos, são estas imagens que correm mais riscos de desaparecer.
No passado recente a fotografia dita analógica, por oposição à digital, era na sua materialidade singular menos vulnerável ao desaparecimento. Desde o betume da judeia, à película, passando pelo daguerreótipo, calótipo, albumina e pelo vidro, a luz fixada parecia quase permanente e pensava- -se que podia ser eterna se, de novo, a luz contínua não a destruísse. Nos negativos, ou ampliadas em papel, as imagens puderam e podem, passado mais de um século ser apreciadas sem intermediação eletrónica ou informática. Apenas o olho humano é necessário para a sua leitura óptica.
A fotografia está morta?
Sebastião Salgado numa entrevista em 2016 afirmava: “A fotografia está acabando porque o que vemos no celular não é a fotografia. A fotografia precisa se materializar, precisa ser impressa, vista, tocada, como quando os pais faziam antes com os álbuns de fotos de seus filhos (…).”Estamos em um processo de eliminação da fotografia. Hoje temos imagens, mas não fotografias”.
Por sua vez, Grant Romer, Diretor dos Programas de Conservação da George Eastman House, reconhece que a história da fotografia mostra que a sua evolução se tem feito através do abandono de velhos processos e a introdução de novos, mas não deixa de considerar que este é o último capítulo desse progresso, introduzindo o conceito de “photality” (ou “fotalidade”): “A fresher, more expressive neologism, itself, may someday replace the word “photograph”, in the not too distant future. Somehow “photality” now seems appropriate – part light – part mortality”( 2010).
No Guide to Digital Photography and Conservation Documentation (2011) editado pelo Instituto Americano de Conservação, pode ler-se num dos capítulos sobre as cinco etapas fundamentais para a preservação de fotografias digitais: usar formatos de arquivos sustentáveis; organizar os dados digitais e inserir metadados; fazer os backups e migração dos dados; recorrer a processos contínuos de verificação da integridade dos arquivos; imprimir material selecionado/editado em processos mais permanentes.
No seu conjunto, estas etapas sintetizam o processo do que se deve entender hoje por preservação digital. Compreende-se, assim, que não é garantida somente fazendo backups, já que guardar apenas pouco resolve, se não houver acesso agilizado. É necessário, portanto, preparar a sua divulgação. Os arquivos de imagens digitais depois da sua catalogação devem ser disponibilizados em sistemas de bancos de imagens online para consulta e utilização controlada. Apenas este procedimento dará sentido e vida às coleções fotográficas e será a razão para a sua própria manutenção, ampliação e divulgação. Caso contrário, todos os arquivos passam a uma não-existência pública, e que tornará ainda mais complicado encontrar formas de financiamento para a manutenção desses jazigos de imagens.
Do conjunto de instruções, destacaria a última ação sobre a impressão em papel como forma de preservação. Da mesma forma que encontramos cópias em acervos fotográficos, e na maioria dos casos não temos os negativos/vidros que lhes deram origem, também aumentam as possiblidades de manter os arquivos quando são impressos em suportes estáveis que possam ser guardados em espaços igualmente controlados quanto à temperatura e humidade. Por outro lado, a publicação de livros parece ser uma das formas mais eficientes de consolidar ou perpetuar a existência de milhares de imagens. Ainda que a impressão não pode por si só substituir a preservação das fotografias digitais, é sim um complemento a esta preservação. Assim, não devemos transformar os arquivos em cápsulas do tempo fechadas, intocáveis e impermeáveis para que possam ser apenas encontradas pelas gerações futuras. Parece começar a ser tarde investir na criação de territórios para as nossas imagens preciosas para que sejam preservadas, vistas e valorizadas pelas gerações atuais e futuras.
A Algarviana
Nós, de atalaia ao Sul, temos vindo a tentar desvendar os percursos dos pioneiros da fotografia, dos excursionistas, das casas fotográficas, dos modernos estúdios, dos editores de postais ilustrados das coleções particulares, dos álbuns de família e, à semelhança de Mário Lyster Franco, personalidade cimeira da cultura e da alma regionalista algarvia, que deu o primeiro grande passo para a fixação da primeira Algarviana – Subsídios para uma bibliografia do Algarve e dos autores algarvios (infelizmente não terminada por falta de apoios), parece-nos necessário que na nova era digital se garanta não apenas a preservação das imagens produzidas nesta região, mas sobretudo dar-lhes visibilidade, fomentar o debate e a reflexão, agilizar o acesso público e interoperar com os múltiplos acervos fotográficos digitalizados ou em processo de desmaterizalização existentes no país.
Aquilo que poder-se-ia chamar de “Algarviana Fotográfica”, um portal que permitisse o acesso aos acervos de imagens fotográficas e respetivos metadados que revelassem uma parcela da história do Algarve através das evidências fotográficas, dos últimos 140 anos. Talvez um pouco mais do que concretizar alguns dos princípios enunciados na Carta da UNESCO para a conservação do património digital (2003), ou tão-só seguir os mais recentes exemplos que são a “Brasiliana Fotográfica” ou a “Europeana Collections- Photography”.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Dezembro)