“Simone Weil ensinou-nos que só há uma maneira de lidar eticamente com o poder: transformá-lo em serviço”.
Maria Clara Bingemer
A escolha das autoras sobre as quais escrevo tem tido como critério não só a sua importância literária, académica e espiritual, mas também a celebração de uma data especial ligada às suas vidas.
Desde a crónica de Outubro tem havido um maior enfoque na espiritualidade, a partir de Março o enfoque será político.
Gosto de perceber como a parte espiritual está plasmada na vida de um(a) autor(a), de um(a) escritor(a), de um(a) poeta. É também uma parte importante na minha vida enquanto cristã e católica sem “respeitos humanos”. Este conceito é usado quando um indivíduo tem vergonha de assumir a religião em que crê, ou por exemplo vergonha de se benzer ou rezar em público.
Tenho orgulho em pertencer a esta maioria, mas já participei em encontros inter-religiosos fora do país, em que, como católica, fiz parte da minoria. A participação em encontros ecuménicos e inter-religiosos deu-me uma visão mais plural sobre a forma de viver a vida e a espiritualidade. O diálogo e a partilha de experiências de vida com pessoas de credos e religiões diferentes tem sido uma aprendizagem enriquecedora.
Simone Weil: militante e mística
Comemora-se precisamente neste mês de Fevereiro 110 anos do nascimento da escritora, professora, filósofa e mística, que morreu aos 34 anos e deixou um legado incrível. É difícil sintetizar, mas vale a pena conhecer alguns traços da sua vida e obra.
Nasceu em Paris no seio de uma família agnóstica. O seu pai era um médico francês de origem judia, e a sua mãe era de origem russa.
A saúde de Simone Weil era frágil, mas era forte a sua capacidade de amar e de compadecer-se com o sofrimento dos outros.
Enquanto militante sindicalista, tornou-se assalariada da Renault e de outras fábricas para viver na pele a condição operária, perceber assim o que significava a escravidão e para escrever sobre o quotidiano dentro das fábricas. Foi crítica acérrima do nazismo, do estalinismo, do trotskismo, lutou na Guerra Civil de Espanha ao lado dos republicanos e foi resistente à ocupação alemã.
Aquando da luta na Resistência Francesa, em Londres, estava débil e recusou a alimentação prescrita pelos médicos, para ser solidária com os soldados franceses e comer apenas a ração diária igual à que lhes era distribuída. Esta situação agravou o seu estado de saúde, levando-a a ser internada com tuberculose. Morreu em 1943.
Simone Weil em Portugal no Verão de 1935
As suas diferentes facetas foram vividas muito intensamente, desde operária fabril a mística. No fundo, teve a experiência mística através da prática e percebeu na pele o que vivem os mais frágeis da sociedade. Esse olhar atento, denunciador e ao mesmo tempo cheio de compaixão acompanhou-a sempre.
Quando deixou a fábrica realizou a primeira experiência com o cristianismo, na Nazaré. Impressionou-se ao ver, numa noite de lua cheia, as mulheres dos pescadores da Nazaré, em procissão, à volta dos barcos, “com velas (…) e cânticos duma tristeza dilacerante”. Aqueles momentos fizeram-na reflectir sobre a dor e a escravidão e como o cristianismo é a religião que conduz a sair da condição de escravo.
A segunda experiência com o cristianismo ocorreu em 1937 em Assis, e Simone Weil escreve o seguinte: “Estando só na pequena capela romana do Séc. XII de Santa Maria degli Angeli, incomparável maravilha de pureza, onde São Francisco de Assis rezou frequentemente, alguma coisa de mais forte me obrigou, pela primeira vez na vida, a colocar-me de joelhos”.
A experiência mística e a prática
Simone Weil na sua Autobiografia espiritual diz que nunca procurou Deus e que o próprio Cristo desceu até ela e a tomou.
Ela faz a experiência mística por meio de sua vivência do real, que a leva a sentir-se tomada pelo amor de Deus. Essa experiência leva-a a, cada vez mais, se entregar inteiramente aos outros.
Maria Clara Bingemer, teóloga brasileira, tem publicado bastante sobre o percurso espiritual de Simone Weil e sobre as dificuldades que impediram a sua adesão total à Igreja, refere que se trata de “uma mulher que viveu uma experiência claramente cristã, embora não institucionalizada, aberta à pluralidade e em diálogo não só com o ateísmo e o agnosticismo do seu ambiente e do seu tempo, mas também com outras tradições religiosas e com diversas áreas do saber”.
Deixou mais de dez livros, inquietantes, que mostram que viveu e praticou aquilo que reflectiu. Não foi baptizada, mas viveu intensamente a vida de Cristo no seu sofrimento. É considerada uma mística afastada da Igreja institucional, no entanto aderiu de coração a tudo o que é o âmago do catolicismo e pode ser uma inspiração para a vida de muitos de nós.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Fevereiro)