SAUDADE ―Esta foi a palavra escolhida pelos portugueses para caracterizar o ano que findou, tendo sido a preferida de 40 mil internautas em votação levada a cabo pelo grupo Porto Editora. Saudade imensa dos entes queridos, saudade do toque, dos beijos, dos abraços. Saudade de se ser espontâneo nos gestos e nos apetites, saudades de meter conversa com alguém desconhecido, saudades de estar em grupo, saudades de conviver, saudades de dançar!
E com saudade se inicia 2021 ao falecer Carlos do Carmo na sua primeira manhã. Saudadetítulo de um dos muitos fados a que deu voz: “E com um nó de saudade na garganta/ Escuto um fado que se entoa à despedida (…) Na memória dos que vão, tal como o vento/ o olhar de quem se ama e não desiste.” Com uma mãe fadista e um pai livreiro estavam criadas boas condições para que o pequeno Carlos crescesse prestando uma grande atenção à música e às palavras. Renovou o Fado e trouxe para este género musical um repertório repleto de poetas: Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner, Hélia Correia, Júlio Pomar, entre outros. A voz límpida e dicção irrepreensível foram duas notas que o caracterizaram. Aliás, não saberia dizer se Carlos do Carmo canta como se falasse ou se fala como se cantasse. Nuno Júdice afirma que foi com ele que aprendeu a escrever poesia para ser cantada: “Porque ele me dizia para estar muito atento, não apenas à melodia da própria língua, mas à métrica, à forma como os acentos têm de estar localizados para que não haja nenhuma traição quando [se] está a cantar”.
E a saudade da voz de Carlos do Carmo com que acorda 2021 incendeia no peito uma outra saudade incontornável: a do piano de Bernardo Sassetti, o compositor que nos deixou em 2012 com apenas 41 anos de idade. Um viveu quase do dobro da vida do outro e em 2011 gravaram um álbum juntos. Trata-se de um disco que não é de Fado nem de Jazz, é de piano e de voz, é de Bernardo e de Carlos, a “respirar juntos” e gravado “sem rede”. Carlos do Carmo tinha uma voz límpida como límpido era o toque de Bernardo Sassetti nas teclas do piano, tão nítido o timbre do seu ataque sem contudo deixar de ser doce. Este álbum é constituído por 10 músicas nunca antes cantadas, tocadas ou gravadas por nenhum dos dois. Há apenas um tema original composto por Bernardo Sassetti com poema de Mário Cláudio. As outras faixas são “revisitações” de canções de José Afonso, Sérgio Godinho, Fausto e Rui Veloso, Violeta Parra, Léo Ferré e Jacques Brel, um tradicional Açoreano (“Sol”) e «Talvez por acaso», fruto de uma parceria de Manuela de Freitas e Carlos Manuel Proença.Tendo sido o principal mentor do Museu do Fado, Carlos do Carmo protagonizou junto com Rui Vieira Nery a candidatura que levou a UNESCO a reconhecer o Fado como Património Imaterial da Humanidade nesse mesmo ano. Agora, na ocasião do seu falecimento, em homenagem ao fadista, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu tornar o fado “Lisboa menina e moça”, com letra de Ary dos Santos e música de Paulo de Carvalho, hino da cidade.
Também nesta primeira semana de 2021 falece João Cutileiro, cujas esculturas deram nova vida ao nosso mármore, de norte a sul do país. Em 2018 doa todo o seu espólio juntamente com a sua casa-atelier em Évora ao Estado. Ministério da Cultura e Município e Universidade de Évora recebem então a incumbência de dinamizar residências artísticas e uma programação cultural e académica na área da escultura em pedra. Cutileiro revolucionou a escultura em Portugal, e suscitou controvérsia durante toda a sua vida artística. O seu monumento ao 25 de Abril, situado no Parque Eduardo VII em Lisboa desde 1997, ficou conhecido como “o pirilau” da cidade devido à sua forma fálica. Contudo, uma das obras que maior polémica suscitoudesde sempre, ergue-se precisamente aqui a Sul, em Lagos. Trata-se da estátua de El Rei D. Sebastião, talvez a sua escultura mais icónica, erigida em 1973. Chocou o regime! Cutileiro esculpe um rei-menino, com um ar frágil e quase andrógino, qual anjo sem género. É uma criança que exibe a sua vulnerabilidade, de elmo tombado no chão, em grande contraste com a forma habitual de retratar as figuras históricas, de porte atlético, e aura heróica. O saudosismo que emana desta estátua transparece nas palavras de Fernando Pessoa no poema “Terceiro” do livro Mensagem: Ah, quando quererás, voltando,/ Fazer minha esperança amor?/ Da névoa e da saudade quando?/ Quando, meu sonho e meu Senhor?
Saudade, é possivelmente a palavra portuguesa de mais difícil tradução. Existem expressões que se aproximam deste sentimento: “te hecho de menos”, dizem os espanhóis; “I miss you”, dizem os ingleses.; “tu me manques” dizem os franceses. Em todas estas línguas são verbos que exprimem um movimento do ânimo ―verbos―, portanto, ―acções―.Inversamente, no caso Português, a saudade é um substantivo, é um nome, a saudade é uma “coisa” que se tem. A saudade tem-se como uma dor de dentes ou uma pedra no sapato. A saudade, em português, é material e corpórea. Descartes poderia dizer que, no nosso caso, a saudade é res extensa; é uma “coisa”, uma substância, ocupa espaço e pesa. Justamente tudo isto se predica de algo que não se tem. Se se tivesse já não havia razão para a saudade. A saudade é esse paradoxo: a intensa presença de uma ausência.
O escritor e filósofo português Afonso Botelho sintetiza a questão deste modo: “Se o que domina a ontologia existencial é a definição do ser do tempo, creio que esta sópoderá reencontrar-se na ontologia da saudade, que é a do tempo sem ser – ontologia negativa ou transcendida que determina a eliminação do tempo, precisamente porque em verdade o completa”.
Na minha experiência pessoal deste sentimento avassalador, essa ausência que se apresenta escava um buraco dentro da alma que é, como diria São João da Cruz, “uma ânsia de amor que não se cura, senão com a presença e a figura”. E este é um dos muitos problemas que enfrentamos hoje em dia. Não são apenas os buracos nas estradas ou o buraco financeiro para onde esta pandemia nos atirou. São também os buracos afectivos que este distanciamento, embora tão necessário, criou. A saudade de alguém só se cura com a presença desse alguém. Não basta a voz, nem a fotografia, e as chamadas pelo Skype, Zoom ou WhatsApp mitigam mas não resolvem o problema. Não ficamos saciados! O digital é um sucedâneo que agradecemos mas que pertence à categoria do chocolate lightou da bica descafeinada, não é, de todo, a mesma coisa! Falta o toque, falta o cheiro, faltam os olhos nos olhos, falta tudo aquilo que pode acontecer quando estamos perto uns do outros em condições de poder responder aos “convites suspensos na surpresa dos instantes”, como diz Sophia de Mello Breyner.
Apesar de tudo, 2021 amanhece com um laivo de esperança ao administrarem-se as primeiras vacinas, oxalá seja também o ano em que se podem começar a matar as saudades!
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de janeiro)