A partir desta terça-feira, 7 de setembro, El Salvador passa a ter a Bitcoin como moeda de curso legal. Isto é, quem vende é obrigado a aceitar esta moeda como válida no país da América Central. O economista Ricardo Ancheta diz ao Expresso que é uma experiência “com muitos riscos e incertezas”.
Economistas e analistas não entendem a necessidade que esta economia altamente dolarizada – o país depende de divisas estrangeiras, neste caso a norte-americana, que é a de uso corrente entre a população – tem de adoptar uma moeda que, dizem, não serve os princípios mais básicos de uma divisa: a de poder possibilitar pagamentos eficientes e de servir como reserva de valor.
“Todo o processo de adopção da Bitcoin foi rodeado de um processo com alta dose de improviso e de opacidade, começando pelo facto de a Bitcoin não reunir as características para ser considerada dinheiro”, afirma Ricardo Ancheta, economista sénior para El Salvador e as Honduras do Instituto Centroamericano de Estudios Fiscales, num comentário para o Expresso.
“O que se vai passar em El Salvador é uma experiência, sem estudos técnicos, com muitos riscos e muita incerteza. A única certeza é que, se isto sai mal, quem vai acabar por pagar é a população”, assevera o economista.
O Instituto, numa nota de julho deste ano em análise à Lei Bitcoin do país, analisa as implicações que a adopção da criptomoeda, de valor altamente variável, pode ter para o equilíbrio das contas do país e para o acesso deste aos mercados de capitais internacionais.
Se os impostos, por exemplo, forem pagos em Bitcoin ao Estado, e se estes não forem convertidos imediatamente em dólares, e antes mantidos como ativos no Tesouro estatal, a imensa volatilidade desta moeda faz com que o risco para as finanças do país seja considerável.
Uma loja onde se aceitam bitcoins, na praia El Zonte, em Chiltiupan, El Salvador. Foto D.R. Jose Cabezas
“O curso legal desta criptomoeda poderá facilitar a evasão tributária e outras formas de fraude fiscal”, pode ler-se na nota de conjuntura do Instituto, que recorda que o uso mais predominante da Bitcoin é feito para lavagem de dinheiro e financiamento de ilícitos como terrorismo ou tráfico de droga.
“El Salvador corre o risco de se converter num centro facilitador destes ilícitos, perpetrados ao abusar das facilidades que oferece o uso da Bitcoin”, referem os autores da nota.
O país encontra-se a negociar com o Fundo Monetário Internacional um acordo no valor de 1,3 mil milhões de dólares (1,1 mil milhões de euros ao câmbio atual), e o próprio Fundo já alertou para os riscos de instabilidade para El Salvador.
BITCOIN, MAIS INVESTIMENTO DO QUE RESERVA DE VALOR
Quem também alerta para os problemas da Bitcoin enquanto moeda oficial é o advogado Rodrigo Formigal. “Uma moeda tem várias funções, reconhecidas por todos, não só por possibilitarem as trocas mas também por serem uma reserva de valor. Isso pressupõe alguma estabilidade e no caso da Bitcoin essa estabilidade não existe”, aponta o sócio da Abreu Advogados e especialista em fintech.
“As poupanças das pessoas oferecem, em moeda, a reserva de valor, em comparação com outros ativos. A Bitcoin não tem essa característica de reserva de valor. Tem mais a característica de investimento”, sublinha ao Expresso o advogado.
“As pessoas com ela visam especular e tirar um ganho, mais do que propriamente retê-la como reserva de valor”, assevera.
RISCOS NO HORIZONTE
Numa nota do analista da JP Morgan Steven Palacio sobre a “bitcoinização” de El Salvador, chama a atenção igualmente para os riscos fiscais de adoptar a Bitcoin lado a lado com o dólar como moeda de curso legal, com o risco de se criar problemas na balança de pagamentos se a população, se, por exemplo, receber pagamentos em Bitcoins do Estado, quiser livrar-se delas, trocando-as por dólares.
O governo criou um fundo de 150 milhões de dólares para garantir a estabilidade cambial da Bitcoin face ao dólar, o que é encarado como insuficiente para fazer face à volatilidade da criptomoeda.
O país da América Central tem sido palco, nos últimos dias, de diversas manifestações contra a implementação da criptomoeda como moeda de curso legal no país, de civis a militares. A iniciativa do presidente da República do país, Nayib Bukele, aprovada pelo parlamento salvadorenho, não é consensual: segundo uma sondagem da Universidad Centroamericana José Simeón Cañas citada pelo jornal Elsalvador.com, 70% dos habitantes de El Salvador não quer usar a Bitcoin – falamos de um país cuja população faz a maioria dos pagamentos em dinheiro vivo – e crê que a chamada Lei Bitcoin deve ser revertida pelos deputados.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso