No dia 23 de novembro, um homem deambulou até à Praça Roma, na cidade de Saragoça, nos arredores de Madrid. Estava nu, aos gritos, e empunhava uma faca. Alertados pelos cidadãos, pelo menos dez agentes da Polícia Nacional aproximaram-se com as armas a postos: mantiveram uma distância de segurança e pediram várias vezes ao homem para largar a faca, mas os gritos foram subindo de tom e o homem acabou por se automutilar repetidas vezes no corpo, suicidando-se.
“Se os polícias estivessem equipados com tasers, podiam tê-lo imobilizado facilmente”, lamenta Enrique López, enquanto mostra as imagens arrepiantes no telemóvel. López é o responsável em Espanha da multinacional Axon, empresa nascida nos Estados Unidos da América e especializada em produtos e tecnologia para forças policiais e militares. Entre outros produtos, a Axon criou a arma de eletrochoque Taser, que acabou por emprestar o nome a todas as armas deste tipo usadas pela polícia.
O Expresso foi a Madrid conhecer um outro produto da Axon: as bodycams, usadas desde o ano passado pela Polícia Municipal da capital espanhola. Este ano, Portugal tornou-se um dos poucos países da União Europeia a aprovar o uso destes equipamentos por parte das forças policiais no âmbito da nova Lei da Videovigilância. Esta decisão já era há muito pedida pelos sindicatos da polícia, no sentido de aumentar a sua segurança mas também o escrutínio da sua atividade.
Aliás, justamente por estas razões, o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura recomendou no ano passado ao Governo português (que propôs a nova lei) a implantação desta medida. Em 2017, a Axon ofereceu 200 bodycams à PSP e à GNR – mas até a legislação começar a ser aplicada no terreno, os equipamentos servem apenas para treino.
A sede da Unidade Central de Segurança da Polícia Municipal de Madrid, que tem a cargo as intervenções policiais mais sensíveis, fica situada junto à Avenida Portugal. Esta polícia comprou 700 bodycams à Axon: o número de agressões baixou desde então e as queixas por agressão ou abuso policial também. “Com a câmara as pessoas têm mais respeito. Não estão habituadas a videovigilância, é uma forma de dissuasão”, sublinha o agente Miguel Ángel, chefe da unidade. “Além disso, deixam de existir duas versões da mesma história. Isso oferece-nos segurança jurídica, e ao cidadão também”, acrescenta o responsável.
© Axon Enterprise Inc.
Nenhuma filmagem pode ser usada para outros fins que não aqueles que estejam definidos, garante Nuno Amorim, director da Axon em Portugal. “Nenhum agente pode pegar numa bodycam, ligar um cabo USB e descarregar as imagens para um computador, porque todas as ações – visualizações, edições ou eliminações – ficam registadas. Ou seja, os agentes não podem manipular ou apagar as filmagens a posteriori”, sublinha.
Para ativar a bodycam, o agente tem de pressionar o dispositivo durante pelo menos dez segundos. “Assim o polícia não pode dizer que ligou a câmara sem querer. Tem de haver intenção”, aponta Miguel Ángel. Além disso, as bodycams também começam a gravar automaticamente a partir do momento que um agente pega na arma ou no taser.
No momento em que uma bodycam é ativada, todas as outras bodycams num espaço de 10 a 15 metros também o são. “Isto permite obter vários ângulos da ocorrência. Tudo é configurável e o software dá inclusive para mascarar as caras das pessoas envolvidas”, explica o agente.
As bodycams da Axon funcionam com um sistema pré-buffer: o dispositivo está continuamente a gravar e a apagar, mas assim que é ativado é capaz de começar a gravar 30 a 120 segundos antes, dependendo da configuração escolhida. No caso da Polícia Municipal de Madrid, foi escolhido o tempo de 90 segundos. “O software permite um sem número de configurações, depende sempre da regulamentação, que estará a cargo do Ministério da Administração Interna numa primeira fase, e depois das regras internas definidas pelas próprias polícias”, aponta Nuno Amorim.
Este “sistema fechado” também permite às forças de segurança partilhar imagens com o Ministério Público de forma “simples, segura e pouco burocrática” – aliás, “por questões de segurança”, o Expresso não foi autorizado a entrar na sala onde funciona o software interno das bodycams. “O objetivo é sempre ter o registo e a rastreabilidade de todas as ações, ou seja, ter uma prova digital que possa ser usada em tribunal”, adianta o responsável da Axon em Portugal. E a formação necessária para saber usar estes equipamentos é dada através de um “curso intensivo”, mas que se pode estender por duas ou três semanas.
“ÀS VEZES AS PESSOAS PERGUNTAM SE ESTÁ A FILMAR”
O Expresso quis perceber se a unanimidade policial em relação às bodycams também está espelhada nas ruas. Passam pouco minutos do meio-dia e cinco carros da Polícia Municipal, alguns deles à paisana, começam a rasgar a cidade de sirenes ligadas em direção à Cañada Real, uma zona “desfavorecida” e “complicada” nos arredores de Madrid, conhecida pelo tráfico de droga. A intervenção de trânsito é montada num túnel com ligação a uma via rápida, e a maioria dos automobilistas são camionistas comerciais e não parecem estranhar o aparato policial.
Quem não é camionista é mandado parar amiúde. Dois jovens num Volkswagen preto falam com o Expresso enquanto os policias confirmam as suas identidades e os documentos do veículo: já sabem que a polícia municipal usa bodycams e não têm quaisquer reservas sobre isso. “Medo de quê? Assim fica tudo gravado. Não temos nada a esconder”, garantem, e percebemos que os jovens acham que já estão a ser filmados: as luzes verdes fixadas no peito do agente vão piscando continuamente.
“O objetivo é o cidadão saber que há uma câmara presente que pode começar a gravar a qualquer momento. Não é suposto o seu uso ser dissimulado”, explica o agente Roberto. “Mas claro que isso pode acontecer se for no âmbito de uma operação secreta”, completa.
“As pessoas ainda não sabem, às vezes perguntam se está a filmar”, diz o agente Jesús Molina, um dos dois polícias (em 12) que tem uma bodycam ao peito. “Quando há uma situação de risco, uma subida de tom por parte do cidadão, costumamos informar que estão a ser gravados. E isso é suficiente para as pessoas se acalmarem. É o primeiro recurso para conter situações potencialmente perigosas”, conta este agente, antes de vaticinar: “Assumo que com o passar do tempo as pessoas vão habituar-se [às bodycams].”
Um outro condutor garante que nunca se vai habituar: “Não gosto disto, não acho que seja necessário. É a primeira vez que vejo a polícia a usar câmaras, nunca tinha reparado”, diz este homem de meia idade que não se quer identificar, talvez por estar fora do seu BMW encostado à parede do túnel enquanto os policias revistam o carro. No entanto, surge uma opinião mais otimista logo a seguir: “Não me incomoda. Gosto da ideia porque faz uso da tecnologia para o bem. É bom para a nossa segurança e para a deles [da polícia]”, diz outro automobilista.
Neste momento, a Polícia Nacional espanhola (equivalente à PSP) tem tasers da Axon, mas não tem bodycams – e o sistema não permite que as duas coisas sejam utilizadas em separado. Por outro lado, a Guardia Civil (equivalente à GNR) tem ao seu dispor 150 bodycams e 15 tasers no âmbito de um projeto piloto. No caso da Polícia Municipal de Madrid, o protocolo diz que cada veículo policial tem de ter pelo menos uma câmara, mas “depende sempre da situação”. O objetivo da força de segurança é que num prazo de cinco anos todos os agentes possuam uma câmara e um taser.
Este sistema da Axon também é usado pela Polícia Metropolitana de Londres, responsável por proteger 7.2 milhões de pessoas na capital britânica. Há 31 mil agentes, mais de 22 mil câmaras, e todos os meses são partilhados com o Ministério Público britânico mais de 5500 vídeos através deste método. “É o sistema mais seguro que já vimos”, diz Justina Brown, responsável pela implementação desta tecnologia nesta polícia. Desde que as bodycams começaram a ser usadas, em 2018, as queixas de abuso policial por parte dos cidadãos diminuíram 20%.
A polícia da cidade de Birmingham, no estado norte-americano do Alabama, começou a usar os dispositivos da Axon em 2015: são 319 câmaras para 789 agentes e os resultados são positivos: as ocorrências em que é necessário usar a força diminuíram 34% de um ano para o outro e as queixas de abuso policial caíram 71%. Já durante este ano de 2021, a polícia local da cidade italiana de Ravenna também passou a utilizar estas bodycams – e o número de episódios violentos diminuiu 50%.
“Neste momento o nosso objetivo não é comercial. Queremos apenas dar a conhecer ao público português este tipo de soluções”, diz Nuno Amorim, lembrando que todos os equipamentos que venham a ser usados pelas forças de segurança vão ser escolhidos através de concursos públicos. Neste momento, a Axon fabrica cerca de 80% dos tasers e bodycams utilizados pelas polícias dos EUA e a grande maioria destes equipamentos utilizados na Europa.
O Expresso viajou até Madrid a convite da Axon
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL