No seu livro Pessoa e Democracia a filósofa María Zambrano (1904-1991) define o regime democrático como “a sociedade na qual não só é permitido, senão que é exigido ser-se pessoa”. Exigir é uma palavra muito forte, quase opressiva… Que terá a filósofa em mente ao definir a democracia deste modo?
Zambrano afirma que a sociedade é o lugar natural do homem e que o seu tempo é o tempo da convivência dando por adquirido que a convivência seria sempre uma convivência entre indivíduos. Contudo, nem sempre foi assim. Recorda-nos a filósofa que o tempo da solidão, aquele que corresponde ao homem que “se sente e se sabe indivíduo” não existiu sempre. Actualmente, não sentimos o tempo da solidão como uma conquista. Nascemos numa época em que ele é dado como um direito. No entanto, este é um tempo de que, inicialmente, apenas os privilegiados – as classes que gozavam de um certo ócio – podiam desfrutar. É por este motivo que a Grécia aristocrática é considerada o berço da filosofia; somente nela surgiu o espaço de solidão homem-indivíduo favorável ao desenvolvimento do conhecimento desinteressado a que Aristóteles se refere. Desde então, a cultura ocidental progrediu no sentido de um individualismo cada vez mais acentuado.
O indivíduo terá surgido na sociedade grega pela primeira vez quando aparece a classe dos cidadãos. Mas o indivíduo não é ainda pessoa… É Sócrates quem começa a cuidar esta dimensão do humano ao estabelecer como preocupação essencial o autoconhecimento: “a pessoa é algo mais que o indivíduo; é o indivíduo dotado de consciência, que se sabe e entende a si próprio” – Esta é a perigosa novidade socrática!
A prescrição de se conhecer a si próprio inclui o aparecimento da consciência individual, a consciência de que nascer humano é um valor, independentemente de se pertencer a uma certa classe social, de se exercer determinada função, de se ser o filho ou sobrinho de A ou B. A consciência de si próprio inaugura também um novo modo da forma-tempo: o tempo da solidão.
Zambrano distingue a existência de diferentes tipos de tempo – o tempo da amizade, do amor, da solidão ou da convivência social – e considera que este último é o suporte do tempo histórico. Porém, o aumento do individualismo requer um aumento proporcional da responsabilidade, uma vez que a solidão cria as condições para pensar e agir com consciência. Torna-se uma exigência ética cuidar de si!
Ser pessoa implica necessariamente um tempo de solidão que permita o autoconhecimento. Cada um de nós não se conhece a si próprio porque o ser humano é um ser indeterminado e aberto, em contínua formação. Pessoa não se é de uma vez, definitivamente; há que assumir essa tarefa, preocupar- se em conhecer-se a si mesmo, rejeitar ser um mero personagem. É por isso que Zambrano nos diz que a ação mais humana entre todas é abrir caminho, isto é, ter um horizonte e uma meta rumo à qual caminhar. Só depois de ter indicado um objetivo, um alvo, é que surgem as pequenas tarefas que cobram sentido em relação a esse propósito final. A ética consiste então numa dupla fidelidade: ao absoluto, fora do tempo; e à relatividade, o discorrer do tempo. Parece contraditório, mas não é. A pessoa humana é caracterizada por querer algo absolutamente – a meta distante que há pouco referimos – mas caminha em direção a ela através de todas as pequenas e finitas coisas, – a contingência que o estar no tempo implica.
Ser pessoa implica também perceber que somos necessariamente livres, ou seja, que temos de assumir a responsabilidade pelas escolhas feitas e envolver-nos na sociedade da qual fazemos parte.
O regime democrático, pelo seu respeito pelas diferenças, a admissão de espaços de solidão e intimidade, a esperançosa abertura ao futuro e a possibilidade de coexistência de diversas formas-tempo simultaneamente é, no entender de Zambrano, o ambiente propício para o desenvolvimento da pessoa.
Pessoa e democracia são, pois, palavras da mesma constelação: as suas órbitas não apenas se conjugam mas vitalizam-se mutuamente.
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Setembro)