No mês passado falámos de Tara, a face feminina de Buda, e a filosofia oriental exerceu o seu fascínio sobre aqueles que participaram tanto no Café Filosófico como no dia inteiro dedicado a Tara com yoga e meditação. Este mês proponho que recordemos as escolas filosóficas de que somos herdeiros no ocidente e que, talvez para espanto de muitos, também incluem exercícios espirituais.
Os Estóicos, por exemplo, declararam explicitamente que filosofar é um exercício. A filosofia não se dedica a ensinar teorias abstractas e muito menos se esgota na exegese de textos. A filosofia consiste na arte de viver! Corresponde a uma atitude concreta e a um estilo de vida determinado nos quais se empenha toda a existência. O acto filosófico não é meramente cognitivo, exerce-se a nível do ser e do estar. É um caminho no sentido de nos tornarmos melhores pessoas e vivermos plenamente. Trata-se de uma espécie de conversão que vira a nossa vida do avesso! Eleva a pessoa de um estado de inautenticidade, obscurecido pela inconsciência e recheado de preocupações, para um estado de vida autêntico, no qual a pessoa está consciente de si própria, possui uma visão ajustada do mundo e, sobretudo, paz interior e liberdade. Aliciante, não é? Mas como fazer?
Todas as escolas filosóficas, sejam elas helénicas ou romanas, concordam em que a principal causa de sofrimento, de desordem e de inconsciência da humanidade são as paixões. Entendam-se as paixões como desejos desregrados e medos exagerados. As pessoas acabam por não viver verdadeiramente por estarem dominadas pelas suas preocupações ― soa-lhe, caro leitor?
Para se livrar das paixões cada escola tinha o seu método terapêutico, mas todas elas almejavam uma transformação do indivíduo, do seu modo de ser e de ver o mundo. Para os Estóicos, de quem falamos hoje, o grande problema da humanidade é o desejo de posse. Gastamos todo o tempo a trabalhar para adquirir coisas, e outro tanto para as tentarmos manter. Com a agravante de que podemos falhar nesta luta por tentar obter o que quer que seja, ou, uma vez alcançado o que se deseja, pode perder-se.
A tarefa da filosofia consistiria então em educar as pessoas para desejarem apenas bens que se podem obter, e absterem-se de todo o mal evitável. Para que um bem seja sempre alcançável e um mal evitável eles têm que depender da liberdade humana. Ora quais sãos os bens e os males que dependem exclusivamente de nós? Apenas o bem e o mal entendidos eticamente se subordinam a nós. Tudo o resto está fora do nosso controle. E tudo aquilo que não depende exclusivamente de nós devia ser-nos indiferente; pertence ao domínio da natureza que nós não controlamos.
Os Estóicos propõem, portanto, uma inversão do nosso modo habitual de olhar o mundo: passar da nossa visão humana da realidade, dependente das paixões e desejos, para uma visão natural das coisas numa perspectiva universal. Esta transformação do ponto de vista não é fácil, e é precisamente aqui que os exercícios espirituais tomam lugar. Passo a passo eles ajudam-nos à metamorfose necessária do nosso eu interior.
Um dos principais exercícios consiste em treinar a atenção (prosoche). Desenvolve-se uma vigilância continua e presença da mente, uma auto-consciência que nunca dorme, uma tensão constante do espírito. Graças a esta atitude o filósofo exerce a sua vontade com total consciência, realmente quer cada acto que pratica. Graças também à vigilância espiritual, o Estóico tem sempre à mão a principal regra da vida: a distinção entre o que depende e não depende de si. Esta atitude pode ser traduzida como atenção plena ao momento presente. Ela é a chave de todos os exercícios espirituais! Liberta-nos das paixões que são sempre causadas pelo passado ou pelo futuro ― duas áreas que não dependem de nós!
O exercício de atenção plena ao momento presente encoraja a concentração em cada instante. Ora o instante, pela sua exiguidade, é sempre suportável. Por outro lado, permite-nos aceder à consciência cósmica ao dar-nos conta do infinito valor de cada momento, enseja a desfrutar de cada átimo da nossa existência no seio do cosmos.
Café Filosófico: [email protected]
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Dezembro)