A cantora brasileira Elza Soares morreu esta quinta-feira, 20 de janeiro, aos 91 anos.
Segundo informação avançada pela sua assessoria de imprensa, Elza Soares morreu em sua casa, no Rio de Janeiro, de causas naturais.
“Ícone da música brasileira, considerada uma das maiores artistas do mundo, a cantora eleita como a Voz do Milénio teve uma vida apoteótica, intensa, que emocionou o mundo com [a] sua voz, [a] sua força e [a] sua determinação”, escreve-se ainda em comunicado.
Mercê da popularidade dos álbuns lançados nos últimos anos, Elza Soares atuou em Portugal recentemente, atuando no festival NOS Primavera Sound, no Porto, entre outros palcos.
“Até ao fim eu vou cantar”
A entrevista de Elza Soares (1930-2022) ao Expresso em 2016
Elza Soares/Facebook
Em 2016, e à boleia do impacto do álbum “A Mulher do Fim do Mundo”, Elza Soares veio a Portugal dar vários concertos. Na altura, falou ao Expresso. “Chega de mulher sofrer, chega de mulher apanhar calada e de ter de andar com medo em casa, com medo da denúncia”, dizia então.
Artigo publicado no Expresso em 2016
É sobejamente conhecida a lenda de Elza Soares mas, na sua oitava década de vida, ela não se importa de a contar, uma e outra vez. [Para os concertos em Portugal, em 2016] a cantora que nasceu numa favela do Rio de Janeiro traz, com orgulho, o álbum do ano passado, “A Mulher do Fim do Mundo”. Aclamado por publicações como o site Pitchfork e forte candidato à vitória nos Grammys Latinos, o disco é o primeiro, na longuíssima carreira da brasileira, a incluir apenas inéditos. Ultimado com uma equipa de jovens músicos de São Paulo, a quem a veterana não poupa elogios, “A Mulher do Fim do Mundo” contém, logo ao segundo tema, um aviso – ou será uma promessa? “Até ao fim eu vou cantar”, ouvimos a carioca, na sua voz erodida por uma vida impiedosa, jurar. Ao telefone do Rio, ela esclarece-nos quanto à intenção destas palavras, colocadas bem no começo do disco, para que não passem despercebidas. “A gente deseja, não é? Cantar até ao fim. Eu acho que vou cantar até ao fim”.
Mais do que no fim, Elza parece, contudo, concentrada no presente. A mulher que, ainda menina de 12 anos, já tinha casado, a mando do pai, e que aos 13 era mãe do primeiro de sete filhos, fala por frases curtas, taxativas, quase como lemas de vida. Quando lhe perguntamos qual o momento mais incrível de uma trajetória carregada de glória mas também de incontáveis tragédias, não hesita: “Esse CD de agora. Com músicas inéditas e tão prestigiado, tão premiado. Dá-me muita alegria”. As gravações do mesmo, com «os garotos formados, músicos excelentes» que a deixaram «bem à-vontade», encheram-na de ânimo (“perfeito” e “sensacional” são os predicados que atribui a todo processo). Também porque, através de canções como “Maria da Vila Matilde”, pôde pôr o dedo nas feridas que lhe interessa debater. «É uma denúncia», explica. “Chega de mulher sofrer, chega de mulher apanhar calada e de ter de andar com medo em casa, com medo da denúncia. E com razão porque, se denunciava, voltava para casa como? Mais medo ainda. Esta denúncia foi muito positiva, porque as mulheres agora têm mais confiança, estão a unir-se mais. Acho que estamos a chegar a um ponto bom. A mulher está a valorizar-se mais, sabe?”.
Apesar das múltiplas contrariedades que enfrentou, ou precisamente por causa delas, Elza Soares nunca teve dificuldades em valorizar-se. Aos 13 anos, por gostar de cantar e precisar de comprar medicamentos para o filho recém-nascido, ofereceu-se para atuar num programa da Rádio Tupi, cujo apresentador, Ary Barroso, reagiu com estranheza ao ver a sua figura, esquálida e literalmente segura por alfinetes (pedira-os à mãe para acomodar o vestidinho nos seus 40 e poucos quilos). “Fui cantar na Rádio Tupi, onde me perguntaram: de que planeta você veio? Foi estranho”, conta ao EXPRESSO. “E eu respondi: do mesmo planeta que você. E Ary: que planeta é esse? Eu disse: o Planeta Fome. E aí acabou logo com a graça”, exulta ela, décadas volvidas. Sabemos que, aos 13 anos, Elza tinha vivido mais do que tantos de nós com o triplo da idade, mas ainda assim arriscamos: como é que uma menina daquele tamanho teve uma resposta tão pronta? “Porque eu vinha mesmo do Planeta Fome”, dispara, com simplicidade. ”Por isso, tive uma oportunidade de falar com sabedoria”.
Quando começou a cantar com regularidade, Elza ouviu todo o tipo de elogio. “Diziam que eu era a maior cantora, a melhor voz de menina, acho que era isso. Depois de uma porção de comentários, ficava assustada”, admite. “Mas ao mesmo tempo falei: está tudo bem, é isso aí, eu mereço”. Nem quando, na década de 70, começou a atuar ao vivo na Europa e nos Estados Unidos, onde a comparavam às divas da soul e do jazz, se deixaria encadear pela fama. “Nunca me deslumbrei. Trabalho é trabalho. Respeitar as pessoas é muito importante”.
Este ano, Elza Soares cantou na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, momento que descreve como “muito bonito. Uma noite memorável e inesquecível, um trabalho lindo, uma competição maravilhosa. O Rio é o meu amor, também”. Mesmo no meio do turbilhão que o Brasil atravessa, ou mais uma vez por causa dele, esta mulher – viúva do futebolista Garrincha, mãe que perdeu quatro de sete filhos para a fome, a doença e o infortúnio, ícone de resiliência quase sobrenatural – mantém a fé. “Sou muito otimista. Acredito que o bem possa existir. Mesmo no meio da confusão, acredito na verdade, ainda. Tenho muita fé. Coragem e fé”. Aquando de uma das últimas visitas a Portugal, nos anos 90, já era apresentada como uma sobrevivente. Perguntamos-lhe: quantas vezes já sobreviveu, Elza? “Não sei explicar. Sem palavras, juro”. E, depois de uma brevíssima pausa: “Tantas vezes que até me esqueço”.
Blitz do Expresso, jornal parceiro do POSTAL