Estuário, de Lídia Jorge, foi publicado no dia 23 de Abril. No seu mais recente romance, a autora, nascida em Boliqueime em 1946, escreve, como sempre, sobre o que sobeja do real, focando-se agora no declínio de uma família e de um negócio familiar, de uma diáspora de filhos que com a crise conflui para a casa do pai. Ao fim de 38 anos de escrita (O Dia dos Prodígios, o seu romance de estreia, foi publicado em 1980), a autora distinguida com os mais diversos prémios nacionais, e conhecida e estudada internacionalmente, continua a agraciar-nos com uma escrita encantatória, lírica, que reflecte sobre o próprio processo de escrita, e imbuída de uma visão crítica, pois em simultâneo analisa o futuro da Humanidade e o estado do mundo. Este é o décimo segundo romance e pode representar uma nova fase na obra da escritora.
Se Os Memoráveis encerrava um ciclo, iniciado com a obra de estreia sobre a Revolução de Abril, O Dia dos Prodígios, e fechado com esse trabalho de reconstrução ou resgate da memória da Revolução em Os Memoráveis, então este Estuário pode bem marcar uma nova fase na escrita de Lídia Jorge, como se pode ler na passagem: «Então, alguém teria de escrever esse livro, um livro que fosse, ao mesmo tempo, o último do passado e o primeiro do futuro.» (p. 15)
Essa é uma boa questão. Talvez Estuário também seja um regresso a O Dia dos Prodígios, mas visto de um outro ângulo. Um ângulo invisível mesmo para um leitor atento, como é o caso do Paulo Serra. Trata-se do impulso que o move. Escrevi este mais recente livro, como escrevi o primeiro, sem rede, apenas porque desejava escrever e, como já disse, usando aquele lema que estava inscrito na faca de Caravaggio – Nec spe nec metu. Onde não há esperança não há medo. Falo do ponto de vista do impacto que os livros podem ou não causar nos leitores. Coloquei-me fora dessa situação.
Como noutros romances, existe novamente um primeiro relato introdutório que lança o mote. Mas ao contrário do habitual não temos aqui uma jovem mulher de olhar ingénuo que vê a sua visão do mundo ser desmontada, mas sim um jovem homem, cujo nome me parece marcadamente simbólico, Edmundo Galeano… Que me lembre é a primeira vez que temos um protagonista masculino…
Tenho tido outros protagonistas masculinos, mas eles não coincidem com a personagem que conduz o fio narrativo. É o caso de Walter Dias de O Vale da Paixão, Antonino Mata de O Vento Assobiando nas Gruas, ou Osvaldo Campos de Combateremos a Sombra. São figuras protagonistas, mas não conduzem o olhar do leitor. Neste caso, Edmundo Galeano conduz a narrativa. Ele é o ouvido atento das palavras secretas proferidas pelas figuras da sua família. Ele mesmo conduz toda a narrativa, ainda que indirectamente.
Charlote, por outro lado, tem também muita importância, e pela sonoridade do nome estrangeiro, pela sua posição marginal em relação à família, coaduna-se mais com o seu leque de heroínas…
Charlote é uma rapariga portuguesa do nosso tempo, mas poderia ser uma figura que caminhasse no solo de um outro país europeu, ou talvez mesmo em espaço mais vasto. Ela debate-se entre o instinto maternal, e outros que lhe andam ligados, em contraste flagrante com os princípios de independência e autonomia femininas próprias do nosso século. Ela não está resolvida, como muitas mulheres ocidentais não estão, ainda que se diga que sim. Estão em plena transição de estatuto. O nome que lhe atribuí pareceu-me adequado. É um dos nomes femininos mais fortes e universais. Charlote é uma figura nascida de um tempo próprio, muito preciso, mas numa geografia global.
A sensação que tive nas primeiras linhas foi a de estar a ler um dos seus contos. Li, entretanto, que este é um romance que começou a escrever nos três anos seguintes à publicação de Os Memoráveis, em 2014, e ao qual voltou depois de alguns anos de pousio. Mas será possível que este tenha sido inicialmente um conto escrito como interregno e que acabou por ir crescendo?
Foi um pouco diferente. Comecei a escrever este livro quando terminava Os Memoráveis, mas tive de interromper durante três anos. Depois regressei a este livro e, entretanto, muita coisa se tinha desactualizado do ponto de vista da sua construção, mas muita coisa também se tinha actualizado do ponto de vista da sua temática. Um dos casos mais curiosos é o que se reporta ao capítulo 26. Foi escrito dois anos antes de Bob Dylan ter recebido o Nobel da Literatura, mas parece ter sido escrito dois anos depois.
Parece-me que muitas vezes as frases se escrevem na negativa… Será mera coincidência ou tem a ver com algum descrédito que se sente pelo mundo actualmente?
Não me apercebo da constante que menciona. Talvez seja assim. Mas, na verdade, o livro, segundo julgo, não dá conta de um descrédito, dá conta de um indício muito relevante de que a ameaça do perigo anda pelos ares. Edmundo lê muito a Ilíada, um livro que avisa sobre a natureza assassina da natureza dos homens, e dos próprios deuses que os incitam. Na narrativa atribuída a Homero, Heitor mata a Pátroclo, e Aquiles, por vingança, mata a Heitor. No mundo actual, num livro que fosse escrito como aviso, tal como desejava Edmundo, não haveria funerais de Heitor, feitos pelo seu pai, Príamo. Os últimos homens ficariam insepultos, porque não sobejaria ninguém. Mas, segundo Edmundo Galeano, esse livro ainda será escrito no futuro. Ele tem vinte sete anos, o que significa que em termos de escrita não passa de um adolescente. Ele mesmo descobrirá que tem muito que aprender pela frente.
Se em O Vale da Paixão, o sentimento era de diáspora, e havia uma casa abandonada assombrada pelos passos desiguais dos seus poucos ocupantes, em Estuário, apesar do título singular (sonoro, formado por uma só palavra) dar a entender que há um desaguar ou um fluir, do rio para esse «mar oceano», o sentimento é de retorno, pois os filhos do pai Galeano regressam a casa. É inclusivamente um romance de várias vozes, cujos capítulos alternam entre os vários filhos, cada um com a sua natureza e interesses próprios…
Está bem observado. De facto, o movimento é oposto. Talvez o tempo tenha mudado e não só o tempo narrativo. Talvez também o tempo social. Num mundo em que tudo gira à velocidade vertiginosa do low cost, tanto se parte quanto se regressa. Neste caso, o regresso é forçado pela adversidade que se abate sobre todos, e serve para que se fale da luta pelo território original entre irmãos. É um tema dos nossos dias. A luta tribal, a luta dentro do clã. Mas a família Galeano é uma família portuguesa, com valores tradicionais, com noção de honra e de estoicismo. Por isso nenhum dos irmãos fala em voz alta do que lhe está a acontecer. Só Edmundo, que vive à escuta do que se passa em silêncio, se apercebe de todos os movimentos entre os irmãos, e no final, depois da confissão de Amadeu Lima, ele se sente apto a falar do caso da sua família próxima em oposição à sua família longínqua. De forma coral, cada um por sua vez, cada um com sua voz. Individualizados, tal como ele os escutou.
Como mulher repartida entre duas cidades, que é convocada frequentemente a outros lugares, dentro e fora do país, o que representa para si a casa?
A casa é um dos centros do centro da identidade. O caroço da pátria, o núcleo individual do mundo. Por alguma coisa se diz que a minha casa é o meu mundo. Mal, porém, de quem diz que o mundo é a sua casa. Aí seria um estádio de limitação insuportável. A casa é o nosso mundo apenas por metonímia. Tomando a parte como amostra do todo. O romance continua a ser um género literário indispensável precisamente porque coloca a nossa casa entre as casas dos outros, entre todas as outras casas do mundo, e pelo facto se faz um exercício de descentramento. Ajuda a sentirmos que somos parte de uma imensa Humanidade. Se o romance desparecesse, ou perdesse o espaço que ocupa, teríamos muito mais gente a dizer que a minha casa é o meu mundo. Ponto final. Talvez se inverta essa marcha egocêntrica. Talvez.
Este é um livro que como a «terceira parte» que, no final, Edmundo planeia começar a escrever, parece corresponder a um tempo futuro (2030 é o título que Edmundo idealiza para esse livro absoluto). Parece representar por um lado o retorno a outros livros de Lídia Jorge, ao mesmo tempo que se reflecte sobre o que escrever agora, da mesma forma que se questiona até que ponto fará sentido escrever quando o próprio futuro do mundo parece ameaçado. Não é um livro de desencanto, até porque termina em aberto, cheio de possibilidade, mas de questionamento, pois nele desaguam temas tão díspares como a fome em África, a imigração, os refugiados, missões humanitárias como a «CARE», que parece ser uma ONG, assim sugestivamente apelidada (CARE, do inglês «cuidar», «nutrir»), um mundo em crise que já não tem lugar neste tempo, como os barcos do negócio da família Galeano, o continente de plástico à deriva no oceano, o futuro do livro, quando os amigos de Edmundo o ridicularizam por querer escrever um livro, e dão muito mais importância à letra de músicas como as dos «Esmagando Abóboras» (Smashing Pumpkins) – o que lembra ainda a polémica com a atribuição do Nobel da Literatura ao músico e letrista Bob Dylan.
Quem lê um livro é senhor da sua opinião sobre ele. Esse espaço de liberdade é sagrado. Se este livro parece conter desencanto a quem lê, é porque ele transmite noções de empobrecimento e de vários tipos de perda. De ordem pessoal, social, política, ontológica. Mas, pessoalmente, como sua autora, trata-se mais de um livro sobre a ameaça que paira sobre a nossa cabeça, sobretudo sobre a cabeça dos vindouros, do que sobre o dilúvio. Creio ter escrito mais um livro de desocultação da realidade do que de castigo. E sobre o papel da Arte, ela aparece na voz de Edmundo Galeano como uma forma de criar uma Arca de Noé onde a sobrevivência possível acontece. Uma metáfora da realidade desejada.
Quando refiro que parece haver um retorno a outros livros de Lídia Jorge, refiro-me a episódios ou passagens que claramente me invocaram outras obras suas, como o protagonista que ginastica a mão, para voltar a escrever, um pouco como a jovem escritora de O Jardim sem Limites, onde também havia um mimo que se puxou até ao limite; ou como o caso do cavalo Imortal que parte à desfilada, como a mula Menina em O Dia dos Prodígios; ou quando Charlote parece aprender a conduzir, acompanhada de perto por Amadeu Lima noutro carro, como a jovem que aprende a pedalar em A Instrumentalina.
Percebe-se que entende os temas que me são sedutores, figuras e actos que aparecem e reaparecem. Representam para mim mesma imagens-luz que passam de uns livros para os outros. Mas não sei se os interprete como formas de enriquecimento da narrativa, se essas repetições serão sinais de fraqueza. Pessoalmente, não prometo não repetir a fuga dos cavalos e dos muares, ou o exercício das mãos diante dos instrumentos de escrita. São actos que me conduzem a revelações que eu imagino importantes, quando estou a escrever. Depois, são o que são.
Por fim, e por palavras da própria autora, que nos explicam um pouco das referências e citações que atravessam o livro, não posso deixar de salientar como a Ilíada é uma das obras apontadas como influência ou inspiração, se bem que com a devida ressalva de constituir um dos livros fundadores da cultura ocidental, mas temos também a referência de O Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera, autor que lhe é querido, e que numa entrevista no Cultura.Sul aquando da publicação de Os Memoráveis eu já tinha apontado parecer ser uma inspiração implícita a essa revisão do 25 de Abril.
Milan Kundera é um dos meus escritores favoritos, injustamente banido das listas do Nobel pela intriga checa. Cada país tem a sua intriga, os seus elogiados em demasia, e os seus perseguidos em demasia. Custa ver à distância que o tempo passe e não se reconheça o valor de um autor fundamental da segunda metade do século XX. Ele ensinou a escrever sobre as ditaduras, lá onde elas matam sem se ver. Continua actual e premonitório. Os seus detractores falam de que o tema das ditaduras do Leste está ultrapassado, e que o caso da invasão de Praga já foi há muito. Há sempre quem não aprecie que se fale dos momentos em que as sociedades colocam a utopia acima do real, o que acontece quando o real se tornou insuportável. Isto para contrapor a uma fórmula de Ortega y Gasset, que não entendeu a dinâmica das revoluções, ainda que tenha entendido quase tudo sobre o seu tempo e até o futuro.
Servir-lhe-á a Ode Marítima, em contrapartida, para mostrar que além do respeito pela tradição está ainda assim em busca de uma linguagem nova para cantar um novo mundo?
A Ode Marítima é hoje um poema popular entre nós. Os alunos do secundário lêem-na e comentam-na. Tornou-se um espaço comum na cultura portuguesa. O recurso ao texto de Pessoa serve para localizar o imaginário ainda adolescente de Edmundo Galeano, cujas referências literárias são apesar de tudo limitadas. Ele apoia-se no ritmo grandioso da ode porque é um jovem que ainda busca o estatuto do herói da proeza. Procura um ritmo que o estimule, e encontra esse longo poema no baú das suas memórias mais frescas.
Edmundo escreve com a mão direita, mão essa que tem apenas dois dedos pois os restantes foram decepados num acidente ao salvar um bebé. Edmundo copia a Ilíada e procura depois outras obras como forma de encontrar a sua própria voz. Edmundo vive fascinado pela visão de uma esfera azul que parece representar o livro perfeito que almeja escrever. Há um carácter fortemente metaficcional nos elementos reunidos em torno desta personagem, como aliás acontece noutros romances seus, como O Jardim sem Limites. Será que está aqui de alguma forma a repensar o seu processo de escrita?
Edmundo Galeano faz a experiência da perda porque lhe amputam parte da mão direita. Não acredito num escritor, ou num criador, que crie e escreva em profundidade sem ter feito a experiência da perda. Se projectar essa minha convicção sobre a criação literária, neste caso, é entrar pelo mundo metaficcional, então sim, a resposta é afirmativa. Edmundo Galeano, nessa medida, sou eu enquanto penso Edmundo Galeano.
Na sua escrita, acho possível encontrar um “estilo” próprio, pois a sua prosa, que define como «litúrgica», feita de repetições e de uma certa musicalidade, um barroco que apesar de tudo é próximo da oralidade. Este romance, ao contrário de outros, foi aliás possível ler de uma rajada, foi difícil pousá-lo. Será mito pensar que também foi escrito assim?
Sim, foi um livro escrito em velocidade. Ficou durante três anos parado, e quando regressei talvez já o tivesse escrito várias vezes em imaginação. Foi sentar-me à secretária e escrevê-lo, como disse, sem horizonte outro que não fosse escrevê-lo, e por isso, sem receio da página seguinte, nem do seu final, nem do seu princípio.
A esfera azul (que também parece representar o planeta no seu estado puro) pode ser interpretada como uma alegoria do desejo que todo o escritor tem de escrever uma obra perfeita, mas também como essa vontade utópica que Edmundo tem de salvar o mundo?
Sim, representa, sobretudo, a forma primitiva dos planetas que faz rodar todas as coisas em torno das suas órbitas, e de que o desejo de criação que é imperioso para quem o experimenta retira, neste caso, a forma esférica. O desejo de criar, que é alguma coisa que é interna, para Edmundo ganha uma expressão externa, visual, pois de outro modo não se representaria a seus próprios olhos. Sim, nessa forma esférica perfeita também está encerrada a forma utópica de salvar o mundo.
O espaço é ambíguo. Se há momentos em que parecemos estar no Algarve, cenário de romances como O Dia dos Prodígios, O Cais das Merendas, O Vento Assobiando nas Gruas, mediante a referência à «Ria», assim em maiúsculas, como entidade viva, há por outro lado espaços designados de forma ambígua, como Praça do Mar, o que significa que podiam localizar-se em qualquer lugar, ou referências como a «ponte» ou o rio que nos remetem para a capital.
Gosto dos espaços com água. Rias são espaços aquáticos férteis. Estuários são espaços de criação de vida porque neles se cruzam dois ambientes húmidos, o da água doce e o da água salgada. Fauna e flora explodem em variedades e abundância. São por isso locais de metáfora onde as coisas acontecem, as peripécias podem suceder-se, as figuras retiram as máscaras e mostram a pele do rosto. Mas não gosto de precisar demasiado. Prefiro que as geografias sejam imprecisas porque mais vastas. O espaço do sonho não abusa dos nomes concretos, nem de tempos precisos. Só às vezes, para que a fantasia tenha assento na terra. E se são precisos, devem estar suficientemente transfigurados. Para o oposto, existe o jornalismo que, em termos de referências concretas, o faz com muito mais eficácia. Nos livros de ficção, se a água entra nos livros, os rios não podem parar só no mar, sempre desaguam em outros lugares mais vastos.
Neste Estuário parece haver um retorno ao seu mundo mágico, pois há laivos de maravilhoso que subtilmente colorem o romance…
O maravilhoso habita em nós. O maravilhoso é realista. Todos nós sabemos que a alegria faz as cadeiras onde nos sentamos voarem pelo ar, e os comboios atravessam paisagens de neve sem limites quando nos sentamos numa carruagem ronceira que vai de bairro a bairro. Morreríamos se não vivêssemos desse sonho. De vez em quando, os livros falam dessa i-realidade salvadora. Em Estuário, isso acontece em algumas páginas. Nunca deixei de me socorrer dessas proezas que nos habitam e que nós escondemos da luz pública para sermos pessoas correctas. A Literatura habita esses campos, esses espaços de incorrecção onde o maravilhoso está sempre a acontecer.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Setembro)