O trabalho de programação em cinema pode ser por vezes similar ao processo arqueológico. A partir de certas pistas podemos chegar a um território mais concreto, que nos abre caminhos e desperta possibilidades. Não obstante, trabalhamos numa escala temporal mais recente. O cinema nasce no final do séc. XIX, ou melhor, foi nessa altura que se descobriu como recolher e projetar as imagens em movimento. Inicialmente era uma atração apresentada como um número de circo, um ato mágico e até do domínio do oculto.
Rapidamente começou a ser pensado como um meio de criação e difusão de conteúdos, tanto do ponto de vista artístico, como cumprindo uma missão mais direta de informação e até de propaganda de ideias e ideais.
Para o trabalho de programador parece, portanto, mais fácil esta tarefa de pesquisa e de criação de um conceito que envolve filmes e criações, realizadas há pouco mais de um século. No entanto, a criatividade dos técnicos é infinita (tal como em todas as áreas artísticas) e o cinema passou por muitos processos técnicos, rápidos, e que criaram formas de acessibilidade e democratização a filmar, editar e contar uma história. Existe, por isso, para o programador um território, tão vasto como o planeta, no decurso de cem anos de produções, onde poderá encontrar o que procura. Com a agravante de que, nas primeiras décadas desde o seu nascimento, não existiu especial preocupação com a preservação destes materiais fílmicos, muito sensíveis e facilmente inflamáveis.
De ressalvar um pequeno parêntesis sobre uma nova iniciativa de alguns dos arquivos cinematográficos, que aparece há cerca de dez anos, com o intuito de angariar imagens em movimento, filmes, no boom das novas tecnologias e no momento em que a humanidade mais recolhe imagens, mais as arquiva e mais as difunde. A particularidade desta procura é que se focaliza nos filmes de família, filmes caseiros produzidos por não profissionais, desde os anos 40 até aos 90, por equipamentos técnicos não profissionais (super 8, VHS, dvcam, etc.), possíveis de ser adquiridos pelas famílias e que recolheram imagens de casamentos, baptizados, férias, momentos na rua. Essas imagens são agora objeto de estudo, por variadas razões, mas sobretudo pelo facto de encerrarem em si uma realidade histórica não manipulada, não inventada, a verdade real do quotidiano dos dias. Sem truques jornalísticos, sem adição de música para ajudar a criar a emoção, sem demagogias e, contudo, com muito pouca margem para a criação artística. Só o olhar de quem filma, verdadeiro amador, e que usa a câmara como instrumento registador de memórias.
Video Lucem pretende apoiar e desenvolver atividades na época baixa do turismo
Este lado mais puro, da recolha de imagens que tinham um fim meramente pessoal, num tempo em que as imagens não eram tão banalizadas como no novo milénio, é a meu ver, o mais interessante desta pesquisa.
Este texto é escrito do ponto de vista de um programador, de alguém que materializa uma ideia que quer partilhar numa programação de filmes. Que pondera porque o deve fazer e como trazer algo de novo com a ligação de objetos artísticos já fechados, os filmes. O momento em que alguém se encontra com um filme é um momento solene, importante e que pode trazer uma experiência única, uma revelação.
O Video Lucem (do latim Vejo a Luz), programa do Cineclube de Faro inserido no âmbito do projeto de promoção cultural 365 Algarve, que pretende apoiar e desenvolver atividades na época baixa do turismo, foi o projeto onde fui convidado a pensar numa programação específica. Não sendo natural de Lisboa e tendo sempre presentes os desequilíbrios no investimento cultural fora do território da capital, a falta de equipamentos e de recursos humanos, bem como o défice de oferta cultural de qualidade assídua (que estabeleça a verdadeira dinâmica do usufruto dos bens culturais por todos), a missão principal seria criar algo novo que marcasse o território com originalidade.
A ideia inicial seria apresentar cine- concertos com filmes mudos e colocar músicos improváveis a criar em direto uma banda sonora original, para cada um dos filmes selecionados.
No processo de investigação e pesquisa dos filmes deparei-me com um filme “The River”, de Frank Borzage, realizado em 1928 nos Estados Unidos. O filme parcialmente perdido, estão desaparecidas algumas cenas, foi recuperado e nas partes em que não há cenas, existem uns cartões com texto que tentam revelar ao espectador a cena que deveria estar ali e que não existe.
Esta experiência de ser público, com momentos de liberdade de criação a meio do filme é nova, mesmo até avant-gard. Eu, público, decido a expressão que o ator faz quando recebe uma notícia inesperada. Decido o enquadramento, o que vejo ao fundo, a posição do corpo da atriz quando é beijada de rompante. Até decido os figurinos, o tipo de iluminação. O Eu público tem assim uma possibilidade, uma simulação, de ser Eu realizador.
A partir deste filme a pesquisa do programador incide em filmes portugueses e estrangeiros que estão guardados em arquivos porque perderam o som, ou porque lhes faltam sequências, ou que nunca foram finalizados. As histórias que levaram a estes acontecimentos são elas próprias narrativas que mereciam ser transformadas em filmes.
A partir das imagens existentes, filmadas, algumas mesmo montadas, e dos guiões originais dos filmes, foi preciso desafiar os artistas para este diálogo. Foram convidados compositores, músicos, cantores, atores e sonoplastas. Todos os nomes que foram surgindo aceitaram a proposta de imediato.
“Ir ver um espetáculo é um encontro com aquilo que desconhecemos”
No Video Lucem foram delineados seis cine-concertos-espetáculos em seis locais do Algarve, de Dezembro de 2018 a Maio de 2019. O programa termina com a apresentação do filme de Frank Borzage, filme que foi a génese desta ideia, acompanhado por piano e pela cantora Cristina Branco, em Tavira.
Com a ligação ao Museu de Portimão, foi apresentado o filme “Heróis do Mar”, de Fernando Garcia, de 1949, que retrata a vida da pesca do bacalhau num registo dramático, com apontamentos cómicos (um dos atores principais é António Silva), na receita certa e eficaz do cinema produzido sobre o olhar do Estado Novo, com uma missão propagandística dos seus ideais.
O desafio foi entregue à atriz e encenadora Flávia Gusmão que convidou a música e sonoplasta Madalena Palmeira para esta viagem de barco.
A Flávia como comandante envolveu vários coletivos locais, identificados pela equipa da Câmara e do Museu de Portimão, e apresentou um resultado final, em criação coletiva. Muitas vezes os processos, quando gratificantes para os participantes, são mais importantes que o resultado final, mas neste caso particular, o resultado final foi uma criação emocionante e comovente para o público.
O filme saiu do arquivo, esteve sempre presente, em palco, no seu suporte original – película 35 mm. O tempo de apresentação foi de duas horas na noite de 15 de Março de 2019. O que aconteceu em palco foi irrepetível – uma comandante e uma tripulação juntos no mesmo propósito, com um público a assistir e a perceber como se homenageia um filme esquecido num arquivo, uma vida de trabalho de homens e mulheres, uma ilusão que o cinema cria, um conjunto de náufragos. Uma viagem.
Sobre o espetáculo em si nada posso escrever nem descrever. O Teatro e o Cinema têm dimensões que só podem ser explicadas no momento em que acontecem, para quem está presente.
Em suma: ir ver um espetáculo é um encontro com aquilo que desconhecemos e que poderá, sem o sabermos, e inesperadamente, falar de nós.
O filme já voltou para o arquivo e lá ficará guardado.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de abril)
(CM)