O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é “um gigantesco manancial de recursos postos à disposição de quem já está na mesa do orçamento”, afirmou o professor de Filosofia Política Viriato Soromenho-Marques, em entrevista à agência Lusa.
“Não encontra no Plano de Recuperação e Resiliência nem 10%, dos tais 15 mil milhões de euros, dedicados a atividades novas, de inovação. Por exemplo: uma agricultura biológica à escala nacional, uma agricultura que respeite o ambiente, uma política florestal baseada nas florestas de uso múltiplo, com espécies autóctones”, sustentou.
De acordo com Viriato Soromenho-Marques, professor de Filosofia Política e do Ambiente na Universidade de Lisboa, o PRR privilegia os grandes grupos económicos: “Essas pessoas não precisam de nenhum partido, já lá está o partido que lhes serve os interesses, já está instalado”.
“O grande talento político do António Costa foi ter percebido isto, ele percebe que para se manter no terreno tem de satisfazer os atores que estão no terreno, os que já têm as peças em cima do tabuleiro. Isto acontece em Portugal e acontece em todo o mundo, ou seja, a crise não é resolvida porque para resolver a crise teríamos de ter a coragem de ir contra a corrente, de alterar as coisas, de fazer diferente. E fazer diferente é uma coisa muito pesada!” (risos).
“Já o Maquiavel escrevia, há 500 anos, que quem quer fazer reformas tem de saber uma coisa muito importante; tem de saber que vai correr riscos, porque vai ter contra si todos aqueles a quem as reformas vão prejudicar e não vai ter a seu lado nem sequer aqueles a quem as reformas vão beneficiar, porque uma reforma para beneficiar um setor social demora tempo e nós vivemos numa sociedade de aceleração”, observou o académico.
Depois da Idade da Produção anunciada em 1822 pelo filósofo francês Auguste Comte [considerado o pai da Sociologia], a humanidade deveria estar agora, segundo Viriato Soromenho Marques, num período de reconstrução de um equilíbrio quebrado.
A principal faceta da crise contemporânea, considerou, é a crise ambiental e climática: “É a que vai ferir mais fundo e demorar mais tempo”.
“No fundo, o que está a acontecer é que temos uma economia da produção que é baseada num pressuposto que é totalmente utópico, que se tornou distópico; que é a ideia de que podemos ter um crescimento infinito”, especificou.
A ideia comprova-se a cada dia nos jornais, referiu. “Nem é preciso ler a imprensa económica, basta ler a imprensa do dia-a-dia. A grande preocupação hoje, ao sair da pandemia, é aumentar os níveis de crescimento”.
Portugal está erradamente, na opinião do catedrático, a voltar ao mesmo modelo da era pré-pandemia. “Esta crise pandémica mostrou que é sempre mau e perigoso para um país depender demasiado de um setor. Saímos do pior da crise da austeridade, da crise do euro, através do turismo, houve um grande investimento e o maior sobressalto económico que tivemos foi no setor”, devido às restrições à circulação, indicou.
“No Plano de Recuperação e Resiliência o que é que se poderia ter feito? Poderia ter-se aprendido com isso e apostar num tipo de oferta turística diferente, mais voltada para o nosso mercado interno, que tem potencialidades gigantescas. Por exemplo, quantos portugueses do continente é que conhecem verdadeiramente a Madeira e os Açores? Quantas pessoas do continente é que já foram mais do que uma vez aos Açores e à Madeira, ou conhecem a Madeira e Porto Santo? Ou conhecem as nove ilhas dos Açores? Não conhecem!”, respondeu.
“Este turismo devastador dos ingleses no Algarve é um absurdo! O Algarve é uma zona abençoada pela natureza, quem conhece um bocadinho do mundo e da Europa percebe o privilégio da região algarvia, mas está a ser malbaratado num tipo de oferta turística (…) O que é que vamos fazer? Vamos repetir o mesmo. De forma, aliás, servil”, afirmou, indignado, sem resistir à cultura popular: “Como diz aquele provérbio, que não posso dizer completamente: “A quem muito se baixa…”
Governos têm “muito pouca capacidade” para respostas de interesse coletivo
A sociedade atual está totalmente dominada pelas dinâmicas dos mercados e os governos têm “muito pouca capacidade” para criar respostas públicas de interesse coletivo, defendeu Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático de Filosofia Política, em entrevista à agência Lusa.
“Os governos têm muito pouca capacidade, ou porque não têm poder efetivo ou porque os próprios sistemas políticos estão efetivamente ao serviço das lógicas de mercado”, sustentou.
Na opinião de Viriato Soromenho-Marques, persiste o erro de se esperarem soluções de mercado para problemas que o próprio mercado cria: “É uma ilusão e nós estamos a pagar muito e vamos pagar ainda mais esta ilusão”.
Professor de Filosofia Política e do Ambiente na Universidade de Lisboa, Soromenho-Marques considerou que a compreensão da pandemia de covid-19 e a prevenção de futuras pandemias terá de fazer-se em várias frentes e de forma integrada, começando desde logo por uma reforma das instituições.
A atual pandemia, frisou, é um dos episódios “mais marcantes” da história recente e pôs em evidência “a ausência de um mecanismo a nível internacional” que permita “monitorizar o advento” de situações destas, do ponto de vista da saúde pública, uma matéria de segurança para a humanidade.
“Não temos uma Organização Mundial de Saúde [OMS]equipada para prevenir este tipo de situações”, disse.
Ao traçar o diagnóstico do caminho percorrido desde a I Guerra Mundial (1914-1918), o catedrático recordou que até ao final dos anos 70 do século passado existiram políticas que impediram o sistema financeiro de ganhar “demasiado poder”, desde os mecanismos criados na sequência do grande ‘crash’ da bolsa norte-americana, em 1929, a respostas sociais que se generalizaram depois da II Guerra Mundial (1939-1945).
“Eram políticas baseadas numa economia em que existia um forte equilíbrio entre as instituições políticas e o sistema económico, um forte equilíbrio favorável mais, até, ao sistema político”, acrescentou.
“Por que é que não tivemos crises financeiras durante aqueles 40 anos? Porque existiam normas de regulação bancária, os bancos tinham regras muito estritas para funcionar, existia uma política social, os países tinham forte financiamento público para a política social”, indicou.
“Tudo isso foi sendo destruído a partir do início dos anos 80 pela vitória das correntes neoliberais”, afirmou o académico, para quem a sociedade atual tem cada vez mais setores em crise e menor capacidade de resposta: “Não criámos as instituições que permitissem estar à altura dos desafios que o mercado mundial colocou, que as inovações tecnológicas colocaram e que os impactos dessa nova globalização que aconteceu a partir dos anos 80 provocaram”.
Sempre que há uma crise, como a de 2008, sublinhou, “o mundo sofre com isso”.
“O último sistema de governação global que existiu foi criado em 1944/45, o sistema de Bretton Woods, que criou as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional e mais tarde o que é hoje conhecido como o Banco Mundial. Esse sistema tem sido erodido, tem sido desgastado, tem sido desvalorizado, até vilipendiado!”, referiu.
“Temos enfraquecido as instituições que garantem a capacidade de cooperação internacional, a capacidade de diálogo e a capacidade de resolução pacífica de conflitos”, observou.
De acordo com Viriato Soromenho-Marques, à crise económica e ambiental soma-se “uma crise profunda na credibilidade da informação oficial”.
A pandemia é disso um “bom exemplo”, advogou, referindo que hoje parecem existir mais incertezas do que há seis meses sobre a génese da pandemia e a OMS “já não tem a energia que tinha em 2020” para atestar tratar-se de uma transmissão zoonótica, contrariamente à teoria do acidente industrial num laboratório em Wuhan, na China, onde poderá ter ocorrido “uma fuga”. Esta hipótese, reforçou Viriato Soromenho Marques, continua “em concorrência” com a possibilidade de transmissão do vírus de uma espécie animal para o homem, passado mais de um ano de pandemia.
Também a Organização das Nações Unidas (ONU) precisaria de “um grande investimento”, um reforço “do interesse de todos os países” e que não é apenas financeiro, notou.
“Um reforço na credibilidade também, um verdadeiro saneamento, digamos assim, da ONU, quer no sentido dos seus meios financeiros, das suas competências, mas também do seu pessoal e das formas como a própria ONU é capaz ou não de combater a corrupção interna e outros sinais de perversão que existem. Em qualquer instituição humana existem esse sinais, a ONU também os tem”, assegurou, remetendo para as palavras do secretário-geral, António Guterres, quando tomou posse: “Quando entrou em funções, disse que seria preciso passar alguns anos a tratar da casa. Se lhe perguntar hoje se a casa está tratada, ele vai dizer que não está tratada”.
UE continua “sem saber para onde vai”
O professor catedrático de Filosofia Política Viriato Soromenho-Marques considerou, em entrevista à Lusa, que a União Europeia (UE) é uma organização ambígua, que continua “sem saber para onde vai” e que representa “um fator de risco” internacional.
“Temos problemas nos estados nacionais e temos problemas em organizações ambíguas, como é o caso da União Europeia. A União Europeia não é nem uma ONU [Organização das Nações Unidas], nem um estado nacional. É uma coisa diferente. É uma coisa diferente que continua sem saber para onde vai”, afirmou o académico, a propósito das mudanças que se impõem à humanidade na sequência da pandemia de covid-19.
Viriato Soromenho-Marques vê a UE como “um fator de risco internacional gigantesco”, uma organização que tanto pode fazer parte da solução como tornar-se, “dentro de algum tempo”, um fator de instabilidade.
“Tivemos a UE mergulhada numa década de crise até agora e passámos de uma crise do euro e das dívidas soberanas para esta crise pandémica e não sabemos como vamos sair daqui”, afirmou.
“As regras da disciplina orçamental, que são fundamentais no euro como está concebido hoje, mantêm-se só que estão entre parêntesis, foram suspensas. Mas não se vê nenhum esforço sério para alterar essas regras, por forma a permitir uma transição suave dos países que estão neste momento com dívidas gigantescas, porque não é só Portugal, nós somos um país muito endividado, mas a nossa dívida no quadro da União Europeia é uma dívida mínima. A dívida é muito grande para nós, em termos de percentagem do nosso PIB, mas irrisória comparada com a dívida total da União Europeia”, precisou.
“A dívida de Itália, de Espanha ou de França, essas sim são dívidas que pesam no computo geral e nós precisaríamos de ter uma resposta da União Europeia para o médio/longo prazo, por forma a que existisse uma possibilidade de sair da crise sem mergulhar numa crise económico-social por causa do regresso das regras de austeridade que fazem parte do Pacto de Estabilidade e Crescimento”, defendeu.
Para Viriato Soromenho-Marques, o cenário de divisão entre países que desejam regressar o quanto antes às regras da austeridade e aqueles que precisam de mais tempo para combater a crise social e económica que a pandemia provocou deixa mais incertezas do que vias para uma solução de interesse comum.
“Imaginemos o que poderá acontecer se daqui a um ano ou dois tivermos, por exemplo, em França uma Presidente da antiga Frente Nacional, a Marine Le Pen. A possibilidade de a Marine Le Pen ganhar as eleições em França hoje é muito maior do que em qualquer período anterior. Qual seria a confiança?”, questionou.
Soromenho-Marques advertiu para o perigo de “crises não respondidas”, quando não há “nem capacidade, nem coragem, nem inteligência”, considerando que neste momento falta tudo isto na instituição europeia.
“A partir dos anos 80 passámos a ter uma economia que se entregou de alma e coração aos mercados. É que não foi só a economia, foi a política! Quem fez a passagem mais firme para uma economia neoliberal curiosamente foram os políticos considerados de esquerda, foram políticos socialistas. Por exemplo, quem fez a transição para o neoliberalismo na Alemanha? Foi uma coligação liderada pelo Partido Social-Democrata, pelo PS lá do sítio, o Gerhard Schroder. As leis mais duras para os trabalhadores, mais favoráveis para o patronato e para o sistema financeiro, foram feitas no tempo do Gerhard Schroder [1998-2005]. Quem foi o campeão da liberalização na Grã-Bretanha? Foi o Tony Blair, o Tony Blair era um trabalhista. O papel do PS em Portugal não foi muito diferente”, afiançou o autor de “Portugal na Queda da Europa” (edição Temas e Debates).
Política internacional deve combater crise climática para evitar nova guerra
A política internacional deve focar-se no combate à crise climática, disse à Lusa o catedrático Viriato Soromenho-Marques, considerando que esta é a raiz de todas as crises que o mundo enfrenta e que pode conduzir a outra grande guerra.
“Se não colocarmos o ambiente e o clima no centro do sistema internacional não vamos conseguir resolver corretamente os conflitos que temos por motivos económicos, por motivos financeiros, por motivos comerciais”, defendeu.
Em entrevista à Lusa a propósito dos desafios que a humanidade enfrenta na sequência da pandemia de covid-19, o professor de Filosofia Política e do Ambiente questionou como é possível continuar a falar-se em crescimento quando já foram ultrapassados “todos os níveis de resiliência” do ecossistema global.
“Precisamos que as questões do ambiente e do clima se tornem o grande fator de reconstrução da ONU [Organização das Nações Unidas] e das organizações internacionais e do direito internacional público”, defendeu.
“Se não colocamos o ambiente como fator central, vamos ter disputas e protecionismo comercial. E outra coisa muito importante, a questão da segurança militar, a questão da corrida aos armamentos, porque não podemos resolver os problemas do ambiente através da guerra. Tem de ser através da paz e da cooperação”, indicou.
Para Viriato Soromenho-Marques, há “vários fatores de perigo” que não devem ser ignorados: ”Estamos no final de um período que não está a conseguir resolver os problemas que criou”.
“Ou vamos entrar numa fase de rutura do sistema, em que, não havendo alternativa, há rutura e isso significa que vamos ter violência, que vamos ter guerra, que vamos ter conflito, que vamos ter mais sofrimento. Ou então, perante estes desafios, vamos conseguir encontrar as respostas”, observou, traçando um paralelismo com os “sinais de fadiga”, de saturação e de “incapacidade dos governos” e do sistema político que conduziram à I Guerra Mundial (1914-1918), antecedida por uma era liberal, “de mercado único”.
As respostas, advogou, deverão surgir através de “políticos reformadores” e de mudanças nas instituições, mas podem ser também impulsionadas por jovens como a ativista sueca Greta Thunberg e pelo despertar de consciências numa geração cujo futuro é pautado pela incerteza.
“Onde está o perigo, está a esperança!”, vaticinou, citando o filósofo e poeta alemão Friedrich Hölderlin.
Na opinião de Viriato Soromenho-Marques, serão pessoas com forte consciência crítica e com “forte aposta na sua capacidade individual de fazer a mudança” que vão criar os novos partidos do futuro de que as sociedades precisam, as novas associações, os novos sindicatos ou associações de proteção dos direitos dos trabalhadores e organizações não governamentais (ONG). “Precisamos desses instrumentos coletivos”, frisou.
Viriato Soromenho-Marques considerou igualmente que o novo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pode representar um sinal de esperança, no plano político, pelas propostas que tem apresentado na área fiscal e pelo facto de ter convidado a China e a Rússia para uma videoconferência, em abril, que reuniu “as maiores áreas económicas e políticas do mundo” com um objetivo de combate às alterações climáticas.
“Isto é um aspeto que me parece positivo, porque se tivermos uma grande guerra, outra vez, será o sinal de fracasso total”, sustentou, considerando que a possibilidade não deve ser descartada.
“Há aqui um conjunto de fatores, até psicológicos, nas lideranças, que não podemos subestimar. Como é que foi possível a eleição do Trump e a quase reeleição do Trump? Como é que foi possível o Bolsonaro? Estamos a falar de pessoas que ultrapassam os mínimos olímpicos da decência”, apontou o académico, que no ano passado publicou um ensaio intitulado “Na Encruzilhada do Presente/Futuro – Nova Habitação da Terra ou Niilismo Ontológico”, no qual discorre sobre a condição humana, a pandemia de covid-19 e a crise ambiental e climática.