Tem um mundo de coisas para arrumar e fazer, quer tempo para si, para a família e para escrever. Deixa para trás uma carreira política de 40 anos: foi presidente da Câmara e Assembleia Municipal de Loulé, deputado à Assembleia da República em sucessivas legislaturas, eurodeputado por duas vezes, membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e, mais recentemente, conselheiro e diplomata da União Europeia junto da Santa Sé.
Hoje, após seis anos de ausência, regressou às origens e diz que não tem por objetivo voltar à vida política ativa. Mas recusa-se a dizer “desta água não beberei”. É a primeira parte de uma entrevista onde se fala da Europa, do país e do Algarve.
Carlos Moedas é um capital de reserva no PSD
“TERÁ FUTURO SE O PARTIDO TIVER FUTURO”
Entrevista: Ramiro Santos – Jornalista | Fotos: Ana Pinto
Nunca esconde a sua paixão pelo Algarve. É uma regionalista convicto e diz que pagou caro por isso. Considera-se um ‘lobo solitário’ no seu percurso político e nunca frequentou os salões ou grupos de conspiração em Lisboa. Afirma que o governo sem a geringonça perdeu qualidade e mostra-se crítico da liderança de Rui Rio no PSD.
Entende que as democracias têm em si os antídotos para enfrentar os perigos dos populismos e aceita o Chega como partido legal e constitucional. Quanto à Europa diz que o Brexit revelou a coesão entre os 27 países da União e que o turismo algarvio, pós-pandemia, não vai sofrer com a saída do Reino Unido.
P – Como elemento do serviço diplomático da União Europeia, pode dizer que a Europa fala a uma só voz? Ou de outra forma: há uma política externa comum na União Europeia?
R – A política externa e de segurança comum é um dos pilares da UE, promovendo a paz e o diálogo à escala global, com base na diplomacia e no respeito pelas regras internacionais. O Serviço Europeu para a Acção Externa, atualmente liderado pelo Alto Representante Josep Borell, assegura a coerência do discurso e da acção da UE em todos os foros das relações multilaterais e bilaterais de todo o mundo. A tal “uma só voz” de que me falou. Esta voz intervém também nos domínios do comércio, da ajuda humanitária e da cooperação para o desenvolvimento. O SEAE é, pois, o serviço diplomático da UE com uma rede de 140 delegações em todo o mundo, protegendo os valores e interesses da UE. Foi neste quadro que trabalhei nos últimos anos. Primeiro em Estrasburgo, depois em Roma.
P – Quais eram os temas em agenda na diplomacia da Europa com a Santa Sé? Como era possível conciliar os interesses vários de 27 países com orientações religiosas diferentes da Igreja de Roma, desde logo, o Reino Unido?
R – Depois de três anos como diplomata junto do Conselho da Europa, que já conhecia muito bem por via da minha participação na respectiva Assembleia Parlamentar durante muitos anos, confesso que me surpreendeu a dimensão política que fui encontrar na actividade da Santa Sé. O Vaticano é um Estado minúsculo em área e população, sem forças militares, mas é o maior “soft power” do mundo. A Igreja Católica está presente por toda a parte, até na China, com presença física e espiritual no terreno ao nível de aldeias onde as administrações nacionais não chegam. E não é apenas nas liturgias, na estratégia pastoral, na difusão da Fé pura e dura que se concentra a sua atenção. Participei em debates de alto nível sobre inteligência artificial, economia, alterações climáticas, desenvolvimento sustentável, desigualdades sociais, etc, com a participação de líderes empresariais à escala mundial, cientistas laureados, governantes. Há muitos pontos de interesse comum entre a União Europeia e a Santa Sé, não necessariamente de acordo em tudo. Mas a defesa do multilateralismo, a integração de refugiados e emigrantes, o combate ao tráfico de seres humanos, a segurança, a defesa das comunidades cristãs perseguidas em muitas partes do mundo, o diálogo inter-religioso, a desinformação. São apenas alguns exemplos de temas muito debatidos entre o Vaticano e a União Europeia.
“Não encaro os populismos e os nacionalismos como fenómeno passageiro nem com preocupação obsessiva. Mas importa que os partidos centrais deem voz ao pensamento e às preocupações das pessoas”
P – Calculo que se encontrou com o Papa Francisco. Que imagem guarda dele e quais eram as preocupações dominantes do Papa em relação à Europa e ao mundo?
R – Encontrei-me com o Papa Francisco quatro vezes no desempenho das minhas funções. É uma personalidade que inspira simplicidade e genuinidade. A minha admiração por ele cresceu durante a estadia em Roma. É um reformista corajoso, de uma Igreja que estava em crise profunda de identidade e de valores, incapaz de compreender a sociedade dos nossos dias. Desenvolveu um combate impiedoso contra a pedofilia na Igreja. Tem feito uma limpeza implacável dos focos de corrupção que minavam escandalosamente as finanças do Vaticano. Valorizou o papel das mulheres na hierarquia e na prática religiosa. Lançou as bases de um diálogo com outras religiões, designadamente com o Islão moderado, com um documento de referência, a Declaração de Abu Dhabi sobre a Fraternidade Humana. Revejo-me totalmente na sua Encíclica “Laudato Sì”,sobre as questões ambientais. E, nos últimos anos, o Papa Francisco intensificou as suas declarações de apoio à União Europeia, como base sólida dos valores universais, da estabilidade e da paz.
P – Como analisa a resposta da Europa à crise provocada pela pandemia da covid-19?
R – Ninguém estava preparado para uma crise sanitária desta dimensão. A União Europeia também não. A resposta inicial foi hesitante, mas a União Europeia mostrou dispor de instrumentos que lhe permitiram atuar em ajuda solidária aos seus membros e também a populações em dificuldades em todo o mundo. Fez-nos sentir que não estamos sós. Se o mais vasto plano de vacinação jamais implementado no mundo já está em marcha, à União Europeia muito o deve. Quem, senão a União Europeia, poderia ter lançado um Plano de Recuperação e Resiliência mobilizando 1,8 triliões de euros para ajudar os Estados-membros a sair da crise económica e social causada pela pandemia?
P – O montante financeiro global para o Plano de Recuperação será suficiente?
R – Quem sabe? A pandemia ainda está em curso, os resultados da vacinação massiva só serão visíveis daqui a muitos meses, a extensão da devastação económica pode prolongar-se por muitos anos.
P – No quadro da geopolítica mundial e do multilateralismo, que papel está reservado à União Europeia?
R – Há desafios globais que não podem ser resolvidos unilateralmente, cada um de per si, isoladamente. A União Europeia actua hoje como “global player” e tem uma parceria estratégica aprofundada com a ONU para o estabelecimento de um sistema multilateral que responda a esses desafios. Estamos a falar de questões como o clima, a pobreza, o desenvolvimento sustentável, a segurança, o desarmamento, o controle de armas, a cyber-segurança, a economia digital, o espaço, a saúde… não esquecendo o comércio livre e justo. Repare que o proteccionismo é um obstáculo ao crescimento económico e um fator de concorrência desleal.
P – A eleição de Joe Biden nos EUA pode servir os interesses da Europa como apaziguador das tensões deixadas pela administração Trump?
R – Espero que Joe Biden esteja à altura de corresponder à esperança que nele depositaram os eleitores que o elegeram. Seria bom para a Europa e para o Mundo.
“Goste-se dele ou não, o Chega é um partido com existência legal e constitucional, enquanto respeitar a lei e a Constituição, mesmo que delas diga discordar”
P – Como vê o crescimento dos populismos e nacionalismos na Europa? Fenómeno passageiro ou sinais de alerta? Que respostas?
R – Acredito no sistema democrático, no Estado de Direito, no arquétipo de valores preconizados nas convenções que colocam os Direitos Humanos no topo das prioridades. Não encaro os populismos e os nacionalismos como fenómeno passageiro nem com preocupação obsessiva. A democracia contém os antídotos necessários, mas é necessário que os partidos centrais abandonem a ditadura do politicamente correto e dêem voz ao pensamento e às preocupações de largos extratos da população europeia em matérias como a imigração, a segurança, o racismo ou até a integração dos ciganos, e que não se revêem no discurso oficial. Há que não deixar essa faixa significativa do eleitorado europeu ao pasto exclusivo de movimentos e partidos de extrema-direita. O Chega crescerá tanto mais, quanto maior atenção lhe derem a comunicação social e os partidos de esquerda em nome de um anti-fascismo mais que estafado. Goste-se dele ou não, o Chega é um partido com existência legal e constitucional, enquanto respeitar a lei e a Constituição, mesmo que delas diga discordar. A democracia inclui democratas e anti-democratas. Pensamentos pró ou contra a Constituição. Republicanos, monárquicos, anarquistas e lunáticos vários. A liberdade de opinião é um valor fundamental que deve ser preservado. Senão… que democracia seria essa?…
P – Trabalhou com o ex-comissário Europeu Carlos Moedas. Acha que ele pode ser uma alternativa a ter em conta no PSD? Que futuro político prevê para Moedas?
R – Carlos Moedas geriu importantes pastas da Comissão Europeia, com apostas na Ciência, na Inovação e na Investigação. Saiu com a imagem intacta, como gestor e como político. É um capital de reserva de um PSD carecido de figuras sem desgaste, e de uma nova geração mais oriunda da sociedade civil e menos das juventudes partidárias. Terá futuro se o PSD tiver futuro. Se será um futuro de liderança, não sei.
P – Como avalia o desempenho de Rui Rio na liderança do PSD e de António Costa como primeiro ministro? Numa escala de 1 a 10, que pontuação lhe parece justa para cada um deles?
R – Sou um simples cidadão, auto-afastado da vida política há mais de seis anos, acabado de regressar do estrangeiro. Não comento com escalas. Observado do exterior, o desempenho de Rui Rio e de António Costa afigura-se-me negativo em ambos os casos. O PSD parece ideologicamente indefinido, receoso de assumir uma verdadeira liderança da oposição. Com tantos motivos de descontentamento com a acção governativa, não descolou nas sondagens. O Governo perdeu o ímpeto da geringonça, aumentou o número de governantes, mas perdeu qualidade, e tem-se atolado numa série de casos que roçam entre a incompetência e a falta de ética. O controle do défice orçamental foi feito à custa de investimento zero e em matéria de crescimento económico Portugal não parou de descer para a cauda da Europa. São realidades anteriores à pandemia. A nossa condição de pedintes da União Europeia agravou-se.
É o político [Marcelo] mais inteligente que conheci, e com maior capacidade de interagir com pessoas, qualquer que fosse o seu escalão social. É um génio político
P – No próximo dia 24 há eleições presidenciais. Que balanço faz à presidência de Marcelo Rebelo de Sousa? Do mesmo modo, que pontuação lhe daria?
R – Conheço Marcelo Rebelo de Sousa desde o início dos anos oitenta. Fiz parte da sua equipa quando liderou o PSD. É o político mais inteligente que conheci e com maior capacidade de interagir com pessoas, qualquer que fosse o seu escalão social. As reuniões com ele, eram autênticas lições de cátedra, qualquer que fosse o tema. Tenho admiração pelas suas qualidades humanas e génio político. Como Presidente da República continuou igual a si próprio, manteve os hábitos, não se transfigurou com o poder, como acontece com muitos outros. É uma pessoa simples e acessível…
P – …como pessoa conhece-o bem, mas como avalia politicamente o seu mandato?
R – Teve um papel fundamental em reduzir a crispação da sociedade portuguesa. Foi solidário com os mais desfavorecidos e as vítimas das tragédias. Vetou diplomas do Governo e do Parlamento (mais do que qualquer outro) quando teve de o fazer. Exerceu um magistério de influência. Contribuiu para a estabilidade política e o bom relacionamento entre órgãos de soberania. Não foi líder de fação. Claro que não foi perfeito e terá cometido alguns erros. Para mim, o principal erro foi ter consentido a não renovação do mandato da anterior Procuradora Geral da República, Joana Marques Vidal, que foi um garante do combate efetivo à corrupção neste País. Mas, no fim de contas, o saldo parece-me positivo. Não me revejo nas críticas que certos setores lhe fazem de ter apoiado excessivamente o Governo de António Costa. O papel do Presidente da República não é o de se substituir à oposição…
P – Nem lhe pergunto em quem vai votar…
R – Quando olho para os sete magníficos candidatos, entre escolher desconhecidos, animadores de salão ou radicais, a opção de votar em Marcelo Rebelo de Sousa parece-me óbvia.
Turismo algarvio não vai sofrer com a saída do Reino Unido
P – Como olha para a saída do Reino Unido da União Europeia?
R – O Reino Unido passou de membro difícil, à categoria de aliado e parceiro estratégico da União Europeia em áreas como a covid-19, as alterações climáticas, a cooperação económica ou a política externa. O Brexit revelou os 27 Estados membros da UE mais unidos do que nunca. Penso que o Turismo do Algarve não sofrerá impactos negativos. Os custos de contexto permanecem inalterados, designadamente as taxas aeroportuárias, e os ingleses continuarão a gostar de vir para a nossa Região.
P – Portugal vai assumir a presidência da União Europeia num contexto particularmente difícil. Quais são as suas expectativas?
R – Portugal vai sair-se bem, porque o contexto melhorou substancialmente na parte final do ano passado. Os fundos para a recuperação económica da Europa estão aprovados, o acordo para o Brexit está fechado, as vacinas contra a covid-19 adquiridas pela União Europeia já estão em plena distribuição, o BCE vai continuar a assegurar crédito baratíssimo. O aliado americano está de volta ao multilateralismo.Tudo são chaves importantes para o sucesso da presidência portuguesa.
Continua na próxima edição: “O Algarve e a regionalização adiada; faltam líderes carismáticos; projetos adiados como o Hospital e o metro de superfície; a “bazuca” europeia ainda não chegou; regresso: não digo desta água não beberei.”
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