“A minha biblioteca é um arquivo de anseios” Susan Sontag
(1933-2004)
Para além dos livros académicos, os temas principais das minhas estantes são Cultura/Poesia e Religião/Diálogo Inter-religioso. O autor português que mais reúne estes temas que me agradam é o teólogo e poeta José Tolentino de Mendonça.
As suas obras revelam a forma como a Igreja e o mundo da cultura se relacionam, tal como os seus novos diálogos. A sua poesia é profundamente tocante e entra pelo território da experiência religiosa e aí a linguagem ganha outra dimensão. Considero os seus ensaios um alimento para a alma, fazendo valorizar a mística de cada instante e saciando a sede de Deus.
Quando encontro um escritor com esta abrangência e profundidade e que conhece a obra de algumas escritoras que marcam a minha vida, isso gera uma enorme empatia intelectual.
Ter tido a possibilidade de falar com o padre e poeta Tolentino de Mendonça sobre Etty Hillesum, Edith Stein e Clarice Lispector, brevemente e em diferentes momentos e mais recentemente por e-mail, fez-me sentir literária e espiritualmente compreendida e mais acompanhada.
Tolentino de Mendonça conhece o âmago das palavras destas três escritoras, três místicas, todas na procura de Deus, nenhuma delas de raiz católica.
Diário
Etty Hillesum tocou-me muito porque quando há anos a comecei a ler, à noite, depois de deitada e de ter escrito o meu diário, descobri que escreveu, nos anos 40, algumas frases praticamente iguais às do meu.
Foi arrepiante e nas primeiras noites quando lia o seu livro, intitulado Diário, ficava muito emocionada. Era quase como se estivesse a reler-me. Vi nela a minha alma gémea e nunca tinha tido uma experiência de leitura tão profunda e arrebatadora.
A questão de Deus, o aperfeiçoamento interior, as paixões, tudo estava ali com as mesmas interrogações, arrebatamentos espirituais e anseios no processo de escrita.
Ficam alguns trechos de Etty: “Vivo a vida até ao fundo, mas tenho a sensação cada vez mais intensa de que entretanto começo a ter obrigações em relação àquilo que eu gostaria de apelidar de meus talentos. Mas por onde começar? Meu Deus há tanta coisa… eu disperso-me e divido-me nos muitos envolvimentos e impressões e pessoas e emoções que vêm ao meu encontro… Já não basta só viver tudo, é preciso que algo mais apareça”.
“Chego a casa e tenho a certeza que vivi coisas extremamente fantásticas, e quero ainda rapidamente enunciar algo imortal sobre elas. Não anotar por palavras simples (…) na realidade um diário é para isso, mas a partir das experiências mais simples quero sobretudo escrever logo aforismos e extrair as sapiências imortais”.
O diário espiritual de Etty é poderoso. Quando vai a caminho de Auschwitz escreve isto: “Não existe um poeta dentro de mim, há sim um pedaço de Deus em mim que poderia desenvolver-se até se tornar poeta. Num campo assim tem de haver contudo um poeta que experiencie a vida lá, lá também, e que como poeta a possa cantar.”
No meio do sofrimento que a irá exterminar, há um sentir poético. É desconcertante esta frase já no final do diário e da vida: “E num momento inesperado, abandonada a mim própria, encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem- me, e nem sequer consigo descrever o bater do seu coração…”
Edith Stein e Etty Hillesum, duas das intelectuais mais interessantes do século XX, que para além de serem judias foram mortas em Auschwitz, deixaram textos extraordinários.
Duas mulheres com o coração cheio de infinito, inspiradoras com os seus diferentes modos de santidade, embora só a primeira tenha sido canonizada. De professora universitária ateia a santa padroeira da Europa. São grandes caminhadas na fé e no conhecimento.
Outra escritora que viveu em tempos difíceis, também judia, foi Simone Weil, que tal como Etty Helissum morreu em 1943, na aventura espiritual da procura interior e na dialética entre cultura e santidade.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Outubro)