Já pensou como será a realidade daqueles que vivem na rua e não têm onde deixar os seus pertences?
Esta é uma triste realidade mas cada vez mais recorrente.
Foi neste sentido e a pensar nestas lacunas que nasceu o projecto cacifos solidários.
Este projecto disponibiliza um cacifo privado em ambiente de rua, acessível 24 horas para pessoas em situação de sem abrigo. Estes podem guardar os seus pertences de forma segura e digna, ao mesmo tempo que beneficiam de acompanhamento psicossocial por profissionais com vista à promoção de autoestima, empoderamento e de motivação para a mudança.
Duarte Paiva, autor deste projecto de inovação social, explicou ao POSTAL como funciona toda a dinâmica, “o projecto funciona sempre em rede, num sentido de cooperação com outras entidades e numa perspectiva de “degrau” entre a rua e uma solução fora desta situação. A gestão do projecto e acompanhamento dos utentes é realizada por profissionais numa vertente de Equipa Técnica de Rua e de Gestão de Caso, mas aqui com a vantagem de ter algo muito concreto e útil que faz com que haja uma ligação formal, regular e mais eficaz com os profissionais”.
Acrescentou ainda que “no caso de Lisboa, estamos integrados no NPISA (Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo), no Funchal constituímos o GTIF (Grupo Técnico Interinstitucional do Funchal), sempre numa perspectiva de cooperação. Assim, o cacifo resolve um problema específico que estas pessoas têm (de protegerem os seus bens), criando segurança e protecção, e adiciona uma vertente profissional, de ligação, articulação aos serviços e melhora em muito os resultados num ambiente que é difícil de intervir. A partir dos cacifos, o utente terá melhor acesso aos recursos (alimentação, saúde, alojamento, higiene), pois a equipa profissional terá que garantir esse acesso, cooperando com as entidades locais, aumentando a boa utilização dos recursos e melhor eficácia da intervenção”.
Esta ideia inovadora surgiu exactamente pela percepção da necessidade que estas pessoas tinham em ter um lugar físico para guardar as suas coisas.
Duarte Paiva contou ao POSTAL que “a ideia surgiu na conversa com pessoas em situação de sem-abrigo em Lisboa, na rua, num dos projectos da Associação Conversa Amiga – ACA (Um Sem-Abrigo Um Amigo). Na conversa falava-se do problema que estas pessoas têm em proteger os seus bens pessoais. Numa das conversas com uma destas pessoas, disse-me que quando era possível guardava os seus pertences mais importantes num cacifo do supermercado. Mas, claro, com muitos inconvenientes: “o tamanho,o acesso e a moeda”.
Referiu ainda que, “outras pessoas relataram que escondiam os sacos e as malas para não serem furtados ou levados pelos serviços de limpeza. Há situações em que a chuva trata de lhes inutilizar muitos dos pertences e molhar a roupa e cobertores. Noutros casos as pessoas optam por ficar com os seus bens, o que torna a ida aos serviços uma impossibilidade pela falta de mobilidade que os volumes e peso provocam“.
Duarte contou ao POSTAL como é que esta ideia se materializou, “neste contexto perguntei aos sem-abrigo se achariam uma boa ideia ter um cacifo para si, com a sua chave e acessível 24 horas por dia. Todas as pessoas responderam positivamente e com bastante entusiasmo”. É preciso perceber que muitas destas pessoas não têm “algo seu” e uma chave há muitos anos. Assim, desenvolvi “o modelo de cacifo e projecto piloto e apresentei à Câmara Municipal de Lisboa. Este foi bem aceite e o projecto avançou em Lisboa com os primeiros 12 Cacifos Solidários na freguesia de Arroios a 17 de Outubro de 2013”.
Esta ideia foi bastante bem recebida desde o início e contemplou “12 pessoas e a recepção foi muito boa. Num dos casos, um senhor que considerávamos mais ‘difícil’ de aderir ao projecto (pois existem algumas regras, ainda que simples) foi das pessoas mais acessíveis e disponíveis quando percebeu que teria um cacifo seu, com a sua chave. Isso mudou muito a relação da equipa técnica com o utente e os resultados.
O cacifo também melhora a autoestima, empoderamento e organização mental, pois desenvolve um grau de autonomia e de segurança a estas pessoas, logo, torna a situação mais fácil de intervir e encontrar soluções fora da rua. Melhora também a organização mental das pessoas, o que muito ajuda em tudo o que os profissionais tenham que fazer. Tal como nós nos mantemos organizados pelas nossas referências temporais e físicas, o mesmo acontece a estas pessoas que voltam a ter uma referência física segura”.
O POSTAL perguntou a Duarte Paiva, impulsionador do projecto, sobre qual seria a sua opinião sobre expandir esta iniciativa para o Algarve. O criador do projecto disse que “com a experiência em Lisboa e no Funchal (agora também em França) seria muito pertinente replicar o projecto no Algarve.
Tal como acontece na Madeira, esta é uma problemática que existe em muitas cidades e não só nos grandes centros. É um projecto concreto com uma metodologia desenvolvida, testada e a ACA está bastante capaz de replicar a experiência, tal como está já a fazer noutras localidades”.
Sublinhou ainda que “este projecto traz uma nova solução, uma nova capacidade de intervenção, de articulação e mais profissionalismo na resolução deste problema que é complexo. Seria uma oportunidade muito positiva para o Algarve e, sobretudo, para as pessoas que estejam nesta situação nessa região”.
(Stefanie Palma / Henrique Dias Freire)