“A arte é força imanente,
Não se ensina, não se aprende,
Não se compra, não se vende,
Nasce e morre com a gente”
(António Aleixo)
Tem a lucidez dos sábios e a tranquilidade dos justos. O tempo, que o transporta há quase um século, passou por ele e deixou as suas marcas. Mas não fora o rigor próprio dos dias que lhe vão tolhendo os gestos e os passos, dir-se-ia que está ali para as curvas da estrada da vida. Para novas aventuras e outros projetos. José Pilar Afonso é daquela cepa velha, rara e de bom fruto. Delicado, um brilho vivo no olhar, semblante que não permite enganos: homem bom e transparente. Amigo da palavra e da verdade. Um homem à moda antiga, que guarda os mesmos valores sem tempo e sem idade.
Por estes dias, a Biblioteca António Ramos Rosa, em Faro, foi descobri-lo a tricotar memórias que lhe escorrem da alma para a ponta dos dedos: tesoura na mão, recorta o desenho estampado na chapa de metal, com o esmero de um menino a tatear o seu brinquedo na plasticina ou no barro vermelho do seu quintal.
E é vê-lo, remirando-se no brilho do olhar cintilante da criança que pula sorridente dentro de si. O seu jeito de sorrir!…
E assim vão os dois, acordando e recriando sonhos adormecidos que, por magia, se transformam e ganham corpo e vida nova. Vêm de um passado longínquo, mas parece que nunca deixaram de estar tão próximos. Tão juntos e tão presentes.
Aos 92 anos, José Pilar Afonso descobriu a sua vocação de artista e vai agora dividindo os seus dias na evocação do Algarve de tempos idos. E a viagem começa num passeio naquelas velhas e ronceiras carroças puxadas pela força das bestas. As de trabalho e as de passeio. Para ricos e para pobres. As mais vistosas tinham acabamentos de luxo: quatro jogos de rodas manobráveis, com cobertura ou capoeira, onde se aconchegavam passeatas domingueiras em quatro lugares almofadados e duas lanternas à frente. Era o trem puxado a dois cavalos. Um topo de gama que fazia o deslumbramento inalcançável do Zezinho, a caminho dos seus 11 anos.
A arte que sai da chapa que ele agora corta e recorta e dobra e pinta nas cores do seu pensamento e imaginação, é feita numa banca improvisada na cozinha ampla de sua casa no Arneiro, onde montou oficina e todo o entusiasmo deste mundo, mais a sensibilidade que o menino trouxe do outro.
E se a curiosidade lhe pode fazer despertar o interesse, esta obra, de rendilhado difícil, pode ser apreciada numa exposição virtual – até queseja possível outra forma – que a biblioteca de Faro decidiu organizar para mostrar aos mais novos, formas de viver de um Portugal antigo, distante e profundo. Rural e longe de tudo.
E é na carroça dos pobres que o vemos ir com o seu pai, levar o trigo ao moinho da Barracosa, num cerro acima, logo passando Santa Bárbara de Nexe. Ainda hoje – basta cerrar os olhos e fixar os sentidos – rola pela encosta abaixo, o “zunido” da mó e das velas a trabalhar o grão. No regresso, tirado o quinhão do moleiro, carregam a maquia em farinha que lhes houvera de caber em parte.
E há mais de se ver: o poço com roldana e balde de tirar água, o carrinho de mão que trouxe dos anos de trabalho em França, os cataventos, para cada gosto e cada casa, o arado e as noras, as alcatruzes e as andorinhas. As andorinhas!
Ah… as andorinhas!… que todos os anos regressam de olhos fechados de uma viagem ao infinito ou para lá dele, direitinhas ao beiral do telhado onde tinham deixado casa alugada, sita na telha 5, primeiro andar, esquina sul, batida ao sol.
– Ainda tem muitos sonhos, Sr. Pilar?
– Não paro de sonhar, permanentemente, de olhos abertos! Ou fechados, seguindo o voo das andorinhas!…