Eu era adolescente e, veja-se o escândalo. Ousava chocar os franceses com a minha pobreza. Atravessei clandestinamente a fronteira “a salto” — modalidade desportiva nacional da altura para fugir da repressão e da fome. Vivia nas “bidonvilles” — esses condomínios de luxo em chapa de zinco e condições sanitárias deploráveis —, trocando o conforto da miséria portuguesa pela sofisticação da miséria francesa.
Eu e os meus compatriotas tínhamos o privilégio de ser ilegais, o que nos proporcionava uma vida precária com um toque de exclusividade. Chamávamos aquilo de “bairros de lata”, conquanto “favelas” seria exotismo demais para a elegância parisiense.
Fomos parar a Champigny-sur-Marne, o epicentro do glamour lamacento, onde o português era uma língua exilada e biodesagradável. À noite, enquanto os franceses dormiam em colchões, eu revia, às lágrimas, fotografias amassadas dos meus, embalado pelo perfume do gasóleo e da chuva.
Os franceses, generosos como sempre, acolheram-nos com apelidos carinhosos. Éramos os catalogados “avecs” — gente simples, exótica, e, acima de tudo, útil para carregar cimento. E assim se refletia o preconceito e a hierarquização simbólica entre franceses e estrangeiros.
Reportagens e opiniões da época retratavam os portugueses como mão de obra útil, mas culturalmente inferior. Essa visão contrastava com a realidade de homens e mulheres que sustentavam setores fundamentais da economia francesa — da construção civil à indústria automóvel. Uma radiografia viva do que a Europa chamava “mão de obra barata”, que, por coincidência, também era gente.
Diziam-nos que éramos sujos, baixos, barbudos, devotos e, para cúmulo, trabalhadores. Trabalhadores! Um defeito grave num país civilizado, única forma de comunicar com o mundo, onde o esforço físico era visto com a mesma desconfiança que uma epidemia.
“Eles cospem no chão!” — escandalizava-se o Le Parisien, como se o asfalto francês fosse um altar.
— “(…) São diferentes de nós e isso causa má impressão. Não são limpos e as suas maneiras em público deixam a desejar. “
— “Vivem em bairros de lata!” — diziam, como se os franceses vivessem a vida em espaços poéticos.
— “São esquisitos, baixos e de bigodes espessos. Chegam, na maioria, homens. As mulheres cobrem os cabelos com panos, evitam saias acima do joelho e muitas não podem cortar o cabelo sem a permissão do marido. São submissas, religiosas e dão o pouco que têm para restaurar as igrejas das suas aldeias. (…) Mas são muito trabalhadores.”
E nós, ingratos, continuávamos a erguer os prédios de Paris, sem perceber que cada parede nova poderia constituir um ato de invasão cultural.
Recordo-me de um taxista me perguntar de onde era natural. “de Portugal”, respondi eu, com o atrevimento habitual. O homem empalideceu: “Mas… estuda?” — perguntou, chocado. Respondi que sim, Ciências Sociais. “Curioso”, murmurou ele, “todos os portugueses que conheço são mulheres-a-dias, porteiros e pedreiros.” Uma amostra estatística digna do INE, pensei.
Os meus compatriotas trabalhavam na Renault, na Citroen e nas obras. Construíam a França — literalmente —, enquanto os franceses edificavam a sua autoimagem de pureza cultural.
Os anos passaram e, veja-se que o disco não mudou. Ontem éramos os bárbaros do Sul; hoje, são outros. Os slogans continuam inalteráveis: “Ameaça à economia”, “Choque cultural”, “Perigo para a segurança nacional”. Apenas mudam os sotaques dos acusados.
A retórica política também contribuiu para a exclusão. O então líder de extrema-direita Jean-Marie Le Pen chegou a propor a deportação de portugueses desempregados, numa lógica de “defesa nacional” que se repete, sob novas formas, em diferentes contextos europeus. Hoje, discursos semelhantes são direcionados a outros grupos migrantes, reproduzindo o mesmo padrão: associar imigração à ameaça económica, à insegurança ou à desintegração cultural.
Tratou-se de um gesto de gratidão por termos ajudado a reconstruir o país do pós-guerra. Já a filha, também política — e os seus clones por toda a Europa — aperfeiçoaram o discurso: agora fala-se em “defesa da identidade nacional”. É sempre pela identidade que se começa, e pelo ódio que se termina.
Analistas e historiadores insistem que a “demonização” dos fluxos migratórios continua a ser um instrumento político eficaz. O medo do estrangeiro é frequentemente explorado por partidos que transformam a diferença em causa de alarme social. Ao longo do tempo, as justificações mudam, mas o discurso essencial permanece: “eles tiram empregos”, “eles não se integram”, “eles sobrecarregam o sistema”.
O medo continua um negócio rentável. Há partidos que fazem carreira eleitoral a vender pânico em promoção. Inventam crises migratórias e prometem resolver boa parte dos problemas que eles mesmos criam. Chamam-lhe política; há quem lhe chame teatro com fundos públicos.
E a velha cantilena repete-se:
“Eles vêm tirar os nossos empregos!”
“Eles sugam os nossos recursos!”
“Eles não se integram!”
Sim, porque integrar-se é um desporto europeu com regras invisíveis: trabalhar sem reclamar, pagar impostos e, claro, desaparecer do mapa cultural.
Enquanto o mundo se globaliza e se interliga tecnologicamente, o pensamento em torno da mobilidade humana continua a ser moldado por narrativas de exclusão. A história dos emigrantes portugueses em França — e das sucessivas vagas migratórias que se seguiram — é um sério lembrete de que as fronteiras mais difíceis de ultrapassar nem sempre são geográficas, mas mentais, culturais.
Enquanto isso, o mundo muda. Inventou-se o Wi-Fi, o Bluetooth e o GPS. Mas, pelo menos a nossa sociedade ainda não inventou o update mental. Continuamos a emitir em frequência xenófoba, o mesmo ruído branco e bronco de sempre.
E lá vem o inevitável refrão, aquele hino desafinado do abominável preconceito:
“Vai para tua terra!”
Como se o planeta tivesse fronteiras morais. Como se alguém, em algum canto do mundo, não fosse já emigrante de alguma coisa.
E penso, entre o sarcasmo e a tristeza: Será que nos falta a coragem para revisitarmos a nossa História como povo? Como é possível que tenhamos esquecido tudo isso — e ainda consigamos repeti-lo com tanta elegância?
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