Nos últimos anos, os casos de ocupação ilegal de imóveis, conhecidos popularmente como “ocupas” , têm ganho destaque em várias cidades portuguesas. O aumento dos preços da habitação e a falta de oferta acessível têm conduzido à ocupação de casas, apartamentos e terrenos devolutos, sobretudo nas grandes áreas urbanas. Esta realidade reacende o debate sobre o direito de propriedade e os limites legais da ocupação em Portugal, num contexto onde a legislação procura equilibrar direitos fundamentais com a proteção da posse legítima.
Em Portugal, o direito de propriedade é expressamente garantido pelo artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, que reconhece a todos “o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”.
Assim, quem ocupa um imóvel sem o consentimento do proprietário comete uma posse ilegítima, uma vez que atua contra o disposto no artigo 1251.º do Código Civil (CC), que define posse como o “poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade”.
Quando essa posse é exercida sem qualquer título jurídico, como contrato de arrendamento ou compra, estamos perante uma ocupação ilícita, de acordo com o jornal digital especializado em economia e negócios Executive Digest. Nestas situações, o proprietário pode invocar o artigo 1311.º do CC, que lhe garante o direito de reivindicar a coisa, isto é, de exigir judicialmente a restituição do imóvel ao seu legítimo dono.
Se o ocupante se recusar a abandonar o local, o proprietário deve recorrer a uma ação de reivindicação ou de despejo (prevista no artigo 1311.º e seguintes do CC, e regulada pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano, Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro) e, consoante o caso, recorrer a ações possessórias, tais como a restituição provisória da posse (arts. 377.º e 378.º do Código de Processo Civil), especialmente em caso de esbulho violento.
É importante referir que a lei não permite expulsar ocupantes ilegais por conta própria com coação ou violência. A defesa da posse por ação direta (art. 1277.º CC) é excecional e tem limites. Fora desses limites, a atuação deve ser judicial/policial. Em caso de flagrante delito, a polícia é autorizada a intervir segundo o art. 255.º do Código de Processo Penal, sendo que, se houver crimes, como por exemplo violação de domicílio (art. 190.º do Código Penal), deve seguir-se via penal.
O que é a usucapião
Usucapião é o mecanismo jurídico que permite a aquisição da propriedade de um bem, móvel ou imóvel, com base na posse prolongada, contínua e pacífica. Está consagrado no artigo 1287.º do CC, que dispõe que “a posse do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição desse direito, independentemente de título e boa fé”.
A lei distingue dois tipos principais:
- Usucapião ordinário — previsto no artigo 1299.º: exige posse pacífica, pública e contínua com boa-fé e justo título; o prazo é, em regra, 15 anos (sem registo) e reduz-se para 10 anos quando exista justo título + registo + boa-fé (art. 1294.º);
- Usucapião extraordinário — regulado no artigo 1296.º: permite a aquisição sem justo título nem boa-fé, desde que a posse se mantenha ininterrupta durante 20 anos.
Isto significa que uma pessoa que utilize um imóvel como se fosse seu, pagando contas, realizando obras e residindo de forma contínua e pública, poderá, em tribunal, reivindicar o direito de propriedade, desde que demonstre essa posse qualificada durante o período exigido, refere a mesma fonte.
Perigo da inércia do proprietário
O facto de alguém ocupar um imóvel não significa automaticamente que possa adquiri-lo por usucapião. Para que tal aconteça, é necessário provar o exercício de poderes de proprietário: posse pública, pacífica e duradoura, sem oposição.
Contudo, o risco surge quando o verdadeiro dono não exerce qualquer ato de posse durante longos anos, abrindo caminho à aplicação do artigo 1297.º, que considera relevante a posse contínua e sem interrupções.
Se o proprietário permanecer inativo e o ocupante agir ostensivamente como dono, pode consolidar-se uma situação de usucapião. A jurisprudência portuguesa é clara: o simples abandono de um imóvel ou terreno pode, ao fim de 20 anos, transformar-se numa perda efetiva do direito de propriedade, caso o ocupante consiga provar os atos de posse qualificada exigidos pela lei.
Como proteger um imóvel de ocupas e do usucapião
A principal forma de proteção, de acordo com a mesma fonte, é a manutenção da posse legal, através de ações concretas que demonstrem o domínio sobre o bem. O artigo 1258.º do CC estabelece que a posse se exerce “quando alguém, por si ou por outrem, detém uma coisa ou exerce um direito, com intenção de agir como titular do respetivo direito”. Assim, a prática regular de atos de posse, como visitar o imóvel, fazer obras ou colocar sinalização de propriedade, torna-se essencial para interromper a posse alheia.
Além disso, é fundamental que o imóvel esteja registado na Conservatória do Registo Predial, de acordo com o artigo 7.º do Código do Registo Predial (Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de julho). O registo público constitui presunção de propriedade e é o primeiro elemento de defesa em tribunal.
A intervenção imediata perante qualquer ocupação é igualmente recomendada, recorrendo à autoridade policial (artigo 255.º do Código de Processo Penal) e, se necessário, a uma ação judicial de reivindicação ou despejo.
A especificidade portuguesa e a proteção constitucional
Em comparação com países como Espanha, onde a figura do “okupa” tem maior expressão mediática, a lei portuguesa oferece proteção reforçada ao direito de propriedade. O artigo 1305.º do CC consagra que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei”.
Ainda assim, o usucapião funciona como uma exceção legal, premiando a posse prolongada e punindo a desatenção do verdadeiro dono, refere ainda a Executive Digest. A falta de vigilância, a ausência de registo e a inação durante décadas são as principais causas de perda de propriedade em Portugal.
Equilíbrio na lei portuguesa
A legislação portuguesa do artigo 62.º da Constituição aos artigos 1287.º a 1299.º do CC, estabelece um equilíbrio entre o direito de propriedade e o reconhecimento de posse prolongada. Mas o princípio fundamental mantém-se: quem é dono deve agir como tal. Só a vigilância ativa e o cumprimento dos registos legais garantem que um imóvel não seja, um dia, ‘vítima’ de ocupação ilegal.
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