Um caso insólito está a dar que falar em Espanha: uma funcionária do El Corte Inglés foi despedida por comer, repetidamente, fatias de presunto durante o horário de trabalho. A decisão foi confirmada pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha, que considerou válidas as imagens de videovigilância apresentadas pela empresa como prova.
O episódio teve lugar em Tarragona, onde uma empregada de El Corte Inglés, com mais de sete anos de antiguidade e contrato sem termo, foi apanhada pelas câmaras de segurança a comer presunto de forma reiterada, sem o pagar. O salário mensal da trabalhadora era de 1.561,44 euros, exercendo funções de vendedora numa secção de produtos alimentares.
As imagens mostravam-na a cortar presunto e a comê-lo diretamente, e até a deslocar-se ao interior do obrador apenas para continuar a consumir o produto. Estes factos ocorreram entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, tendo a empresa decidido avançar com um processo disciplinar por “apropriação indevida de mercadorias e violação das normas higiénico-sanitárias internas”, de acordo com o jornal digital espanhol Noticias Trabajo.
A decisão espanhola
O El Corte Inglés despediu a trabalhadora a 22 de janeiro de 2018, invocando o artigo 55.2 do Estatuto dos Trabalhadores e as disposições do seu convénio coletivo. A funcionária apresentou uma ação judicial, pedindo que o despedimento fosse considerado improcedente, refere a mesma fonte.
O Tribunal do Trabalho de Tarragona rejeitou o pedido, validando o despedimento com base nas provas apresentadas. O tribunal entendeu que as gravações eram legítimas, uma vez que a empregada tinha sido informada da existência das câmaras e do seu eventual uso para fins disciplinares. Durante o julgamento, ficou provado que a funcionária consumia presunto várias vezes ao longo do turno, colocando um pacote cortado junto à máquina de embalamento para o ir comendo, inclusive enquanto manipulava outros produtos alimentares.
A defesa alegou que as gravações violavam os direitos fundamentais da trabalhadora, mas o tribunal concluiu que a medida foi proporcional, tendo em conta as irregularidades detetadas no inventário da loja.
O Tribunal Superior de Justiça confirma o despedimento
A trabalhadora recorreu, mas o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha manteve a decisão anterior, considerando o despedimento “ajustado à lei”. Segundo o acórdão n.º 73/2020, o sistema de videovigilância cumpria os critérios de idoneidade, necessidade e proporcionalidade definidos pela jurisprudência espanhola e europeia.
O tribunal destacou ainda que a funcionária tinha sido previamente informada sobre a existência das câmaras e sobre as normas internas que proibiam o consumo de produtos não pagos. As imagens, portanto, constituíram prova válida para justificar o despedimento disciplinar, de acordo com o Noticias Trabajo.
Com base nisso, o TSJ declarou o despedimento procedente, sem direito a indemnização nem a salários de tramitação, validando a atuação da empresa como “proporcional à gravidade da conduta”.
E se acontecesse em Portugal?
Se um caso idêntico ocorresse em território português, a situação seria juridicamente muito semelhante, embora com enquadramento legal próprio. De acordo com o Código do Trabalho português (CT), nomeadamente o artigo 351.º, o despedimento por justa causa pode ocorrer sempre que exista uma violação grave e culposa das obrigações do trabalhador, tornando imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.
Comer produtos sem pagar, sendo considerado apropriação indevida ou até abuso de confiança, seria suficiente para justificar um despedimento disciplinar. A jurisprudência portuguesa tem reiterado que atos de desonestidade, mesmo de pequena expressão económica, podem configurar justa causa de despedimento, sobretudo em contextos de confiança direta com o empregador.
Papel da videovigilância em Portugal
No caso português, a utilização de câmaras de vigilância como meio de prova também é possível, mas com limites rigorosos. Segundo o artigo 20.º do CT e a Lei n.º 58/2019 (que executa o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), as câmaras só podem ser usadas para proteger pessoas e bens ou controlar a segurança das instalações, não para fiscalizar diretamente o desempenho dos trabalhadores.
Ao abrigo da Lei n.º 58/2019, no seu artigo 28.º, as imagens captadas ao abrigo do artigo 20.º do CT só podem ser usadas no âmbito do processo penal e, disciplinarmente, apenas na medida em que também sejam usadas no processo penal, pelo que a admissibilidade probatória depende deste crivo.
As consequências legais
Em Portugal, se o trabalhador fosse despedido por justa causa nestes moldes, perderia o direito a indemnização ou compensação e também a aviso prévio, como prevê o artigo 366.º do CT. O empregador teria ainda de instaurar um processo disciplinar formal, garantindo o direito de defesa do trabalhador, sob pena de nulidade do despedimento.
No caso espanhol, o tribunal também sublinhou que El Corte Inglés seguiu todos os trâmites legais, incluindo a notificação da empregada e a fundamentação detalhada da carta de despedimento, exatamente o que seria exigido em Portugal.
Fronteira entre vigilância e privacidade
Tanto em Espanha como em Portugal, este tipo de casos levanta sempre o debate sobre o equilíbrio entre o direito à privacidade e o dever de lealdade do trabalhador.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem decidido que a vigilância laboral é admissível quando existe uma suspeita fundamentada de irregularidades e quando as gravações se limitam a zonas visíveis e não intrusivas.
















