Restos mortais de vítimas do 27 de maio entregues às famílias, incluindo os corpos de Sita Vales e José Van-Dunem, não correspondem aos testes de ADN, anunciaram esta quinta-feira os órfãos da Associação M27.
Numa “carta a Angola”, os órfãos denunciam a “máquina de propaganda” do Governo angolano e da CIVICOP – Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos, ao realizar cerimónias fúnebres e entregar corpos “em cerimónias públicas amplamente televisionadas, em véspera de eleições presidenciais“, que descrevem agora como “um exercício de crueldade“.
“O país viu. Todo o país viu e viveu esse momento como um tempo de verdade e reconciliação. Porém, nem todos recebemos acriticamente os restos mortais que nos foram indicados como pertencentes aos nossos pais. Alguns de nós pediram a realização de testes de ADN para confirmar a identidade dos cadáveres“, explicam no documento.
O Governo angolano promoveu, no ano passado, as cerimónias fúnebres de Alves Bernardo Batista “Nito Alves”, Jacob Caetano João “Monstro Imortal”, Arsénio Lourenço Mesquita “Sihanouk” e Ilídio Ramalhete, vítimas do alegado golpe de Estado de 27 de maio de 1977.
No local onde foram encontradas estas ossadas, estariam também as de José Van-Dunem e Sita Vales, um jovem casal de dirigentes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que foram assassinados durante a repressão que se seguiu, mas os seus familiares exigiram novos exames forenses, tendo-se deslocado a Luanda uma equipa de especialistas portugueses, liderada pelo ex-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Duarte Nuno Vieira.
Segundo os órfãos, “foi com espanto e dor” que “após a realização dos exames, se concluiu que nenhuma das amostras corresponde aos cadáveres dos pais“.
Um familiar das vítimas disse à Lusa que os peritos portugueses encontraram oito corpos misturados em sacos, tiveram de reconstituir cada corpo e posteriormente fazer os exames.
“Um desses corpos, entre os oito, era apenas uma mandíbula. Entre estes havia duas crianças”, relatou.
Órfãos manifestam-se “incrédulos” com a descoberta
Na carta, os órfãos da associação M27 manifestam-se “incrédulos“, lamentando que à “vida familiar amputada” e “marcada pela tristeza” da perda dos pais se tenha assistido a um “exercício de crueldade, em que se reavivaram gratuitamente sentimentos de perda, de dor e de mágoa, com objetivos que nada têm de nobre“.
“E se nenhum dos restos examinados corresponde às pessoas a quem se disse pertencerem, o que se passará com os restos mortais já entregues às famílias e enterrados sem exames prévios?”, questionam.
Os órfãos criticam também a metodologia seguida pela CIVICOP, porque envolvia pessoas ligadas à repressão em maio de 1977 e que nenhum interesse teriam na reposição da verdade, e não incluía representantes das vítimas, nem clarificaram os procedimentos adotados na localização e identificação dos cadáveres.
“Há seguramente ainda muito por desvendar sobre o que aconteceu no dia 27 de maio de 1977, sobre os acontecimentos que o precederam e sobre a barbárie que se lhe seguiu”, destacam na carta aberta dirigida aos seus compatriotas.
Os órfãos realçam ainda que há cerca de ano e meio viram “uma luz no fundo deste longo túnel“, com o reconhecimento por parte do Presidente João Lourenço, pela primeira vez na história de Angola independente, dos excessos do Estado nos acontecimentos que se seguiram ao 27 de maio, que incluiu a morte de cidadãos.
Um gesto que, dizem, olharam inicialmente “com desconfiança, por ser inédito, por ter lugar em ano anterior ao de eleições“, mas que acabaram por reconhecer como o primeiro sinal genuíno de busca pública da verdade e de intenção de reconciliação.
“Paralelamente, foi criada toda uma máquina de propaganda que poderia garantir tudo menos um trabalho rigoroso e um resultado sério“, acrescentam, apontando a exibição televisiva de imagens de retroescavadoras, que estariam a remover restos mortais e o anúncio público da possível localização de cadáveres de pessoas, “reavivando sentimentos de profunda comoção e sofrimento nas famílias”.
Ao descobrirem agora que as amostras de ADN não correspondem aos cadáveres dos seus familiares, os órfãos pedem que os responsáveis e participantes na repressão — muitos dos quais ainda vivos e identificados — sejam chamados a indicar, sob juramento, os locais onde foram enterrados ou lançados os corpos a que tiraram ou mandaram tirar a vida.
“Quarenta e cinco anos é tempo suficiente para se encarar a verdade e para o país enfrentar os seus traumas“, sublinham na carta.
“Não conseguiremos ultrapassar esta tragédia e aprender com ela se continuarmos a recusar-nos a enfrentar verdadeiramente os factos“, afirmam os órfãos, que querem “publicamente exprimir a deceção com todo este processo”, e apelam ao povo angolano “que se una na busca da verdade”.
O que aconteceu a 27 de maio de 1977
Em 27 de maio de 1977, uma alegada tentativa de golpe de Estado, numa operação que terá sido liderada por Nito Alves – então ex-ministro do Interior desde a independência (11 de novembro de 1975) até outubro de 1976 -, foi violentamente reprimida pelo regime de Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola.
Seis dias antes, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MLPA, no poder) expulsara Nito Alves do partido, o que levou o antigo ministro e vários apoiantes a invadirem a prisão de Luanda para libertar outros simpatizantes, assumindo paralelamente o controlo da estação da rádio nacional, um movimento que ficou conhecido como “fraccionismo”.
As tropas leais a Agostinho Neto, com apoio de militares cubanos, acabaram por estabelecer a ordem e prenderam os revoltosos, seguindo-se depois o que ficou conhecido como “purga”, com a eliminação das fações, tendo sido mortas cerca de 30 mil pessoas, na maior parte sem qualquer ligação a Nito Alves, tal como afirma a Amnistia Internacional em vários relatórios sobre o assunto.
Em abril de 2019, o Presidente angolano ordenou a criação de uma comissão (a CIVICOP), para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de novembro de 1975 e 04 de abril de 2002 (fim da guerra civil).