Vi-o assim que estacionei; estava no passeio à conversa com duas pessoas. Também me deve ter visto a mim pois antes de ter tido sequer tempo para sair do carro já ele se estava a ir embora apressadamente. Entrei na loja constatando o óbvio: ele tinha fugido de mim. Um sorriso sereno e pleno de satisfação invadiu-me, trazendo consigo boa disposição para o resto do dia.
Eu sei: o mais normal é ficarmos muito incomodados com os desafectos e as adversidades relacionais. O mais fácil é entristecermos com quem nos quer causar tristeza. O mais lógico é duvidarmos de nós e do nosso valor quando alguém se nos opõe ou manifesta simplesmente que não gosta de nós. Mas lá por isto ser o mais normal, fácil e lógico, não quer dizer que seja o mais certo ou o melhor para nós.
As equações, neste campo, são até bastante simples, mas antes de avançarmos para elas há que distinguir certas coisas:
Primeiro: que os outros não nos gramem não implica que nós tenhamos que ter por eles qualquer sentimento negativo.
Segundo: de todos os motivos que podem fazer com que alguém nos deteste (medo, inveja, azia, ou simples repulsa de campos energéticos) só um nos pode importar: algum melindre eventualmente causado por acções ou omissões nossas que lhe tenham sido directa e intencionalmente dirigidos.
Terceiro: é impossível passar pela vida sem atritos. Posto isto, avancemos: pessoas que cheguem à vida adulta sem terem feito, pelo caminho, algumas inimizades, são pessoas relativamente suspeitas. Suspeitas de não terem vivido nada, ou de se terem demitido sempre da tomada de posições, ou (o pior de tudo) de terem muitas caras e nenhum carácter.
No fundo o que quero dizer é que devemos regozijar ante a constatação de termos quem não nos grame! Essas pessoas, e o desafecto de estimação que convictamente nutrem por nós, são as garantias personificadas de estarmos no bom caminho; são a prova de que estamos empenhados em viver, em ser socialmente participativos, em defender os nossos ideais e combater o que nos merece repulsa. Quem não nos grama tem o valor incrível de nos devolver a consciência do nosso carácter, rectidão e carisma. E isto é tanto mais verdade quanto a consciência em nada nos pesa e por eles nada mais sentimos que indiferença e gratidão.
É por isto que valorizo muito quem não me fala, quem muda de passeio ou de rua ao ver-me, quem se esconde nos corredores do supermercado para não encarar comigo de frente. É por isso que, quando tal acontece, tais pessoas me deixam tão feliz quanto me deixariam se me adorassem.