A importância atribuída ao Património Cultural Imaterial (PCI) ganha folgo a partir do séc. XXI, abrindo os horizontes do que até então era considerado património. A Convenção para a Salvaguarda do PCI da UNESCO (2003) e a consequente legislação de cada país marcam um novo percurso na investigação, inventariação e valorização do património. O foco torna-se mais alargado e também de maior complexidade por estar centrado nas pessoas e nas comunidades locais. É um património dinâmico, em constante transformação e, por isso, mais difícil de inventariar e salvaguardar.
A orientação metodológica para a inventariação destas expressões patrimoniais passa inevitavelmente por recorrer a metodologias participativas, onde os actores sociais detentores das práticas e representações a inventariar e salvaguardar assumem um papel primordial. O discurso jurídico, político e científico apela a uma aproximação às comunidades detentoras deste património, o chamado “envolvimento da comunidade”.
No entanto, factores como a desertificação humana das zonas rurais, a primazia dada aos núcleos urbanos em detrimento das comunidades rurais, o envelhecimento destas e o progressivo abandono do mundo rural têm-se traduzido num sentimento de exclusão, falta de esperança, com repercussões na auto-estima e no sentimento de pertença das pessoas.
Esta conjuntura, agravada por se tratar de comunidades que têm vindo a perder a população mais jovem, mais dinâmica e activa, cria condições para que estas comunidades vão desvalorizando a importância do seu real valor, enquanto pessoas detentoras de saberes- fazeres e com tradições que fazem parte da nossa história, memória, identidade colectiva e património. E sem esta consciência, não há envolvimento, não há acção, não há participação, nem valorização dos seus conhecimentos, dos seus saberes, das suas tradições.
O Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela (CIIPC/ CMVRSA) desenvolve a sua actividade na área do património há 13 anos, na antiga Escola Primária da Aldeia de Santa Rita (Município de Vila Real de Santo António). Com a grande vantagem de trabalhar geograficamente no seio da comunidade de Cacela, tem vindo a sentir, ao longo do seu percurso, a necessidade cada vez maior de criar um relacionamento, um envolvimento mais profundo com as pessoas desta comunidade, as verdadeiras detentoras do conhecimento sobre o seu património imaterial. Com este propósito, tem desenvolvido algumas actividades que visam precisamente esta aproximação, envolvimento, participação.
Um dos projectos desenvolvidos foi a criação de um jornal local. Um boletim informativo feito com e para a comunidade que se assume como uma ferramenta de comunicação muito presente na vida das comunidades rurais. Para além de divulgar actividades, acontecimentos e dinâmicas comunitárias, estimula a memória colectiva da comunidade, dando a conhecer a cultura por ela produzida.
“O Tomilho” nasceu em 2016 precisamente com estes propósitos: por um lado, dar a conhecer à comunidade projectos e actividades realizadas pelo CIIPC, desmontando conceitos teóricos ligados ao património através de uma linguagem simples e divulgando património local (material ou imaterial) ligado a esta comunidade (escavações arqueológicas em Cacela Velha, os astros e o ciclo agrário, túmulo megalítico de Santa Rita, etc.). Por outro lado, apelar à participação da comunidade em três rubricas distintas: partilha de memórias e saberes ligados a uma tradição, festividade, ofício, a partir de uma fotografia antiga; contar a história associada a um objecto antigo de uso quotidiano (mó manual, balança de vara, etc.) e a partilha de uma receita culinária caseira (lebre com feijão, sopas de tomate).
Nestas rubricas, os participantes recordam o passado através de uma fotografia ou de um objecto seu que funciona como estimulador na narração das suas memórias. Estas memórias são escritas e partilhadas com todos os leitores do Tomilho, enriquecendo a memória colectiva, o sentimento de pertença e reforçando a identidade social desta comunidade, o que, em última instância, contribui para aumentar a auto-estima e consolidar a tal consciência colectiva, premissas fundamentais para um efectivo envolvimento e participação dessa comunidade. Com este instrumento pretende-se também, a par de outras actividades realizadas com a comunidade, que o trabalho de investigação e divulgação do património, se torne progressivamente mais compreendido e valorizado pela comunidade que se revê nos conteúdos trabalhados pelos projectos e actividades do Centro.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Outubro)