O mais recente livro de Hélia Correia, Um Bailarino na Batalha, publicado pela Relógio d’Água, em Setembro de 2018, é um poema em forma de narrativa, conforme à prosa poética a que a autora nos tem habituado, e com a respiração de um poema épico. O leitor sente-se perdido, tacteando um horizonte de referência, quer no espaço quer no tempo, enquanto tenta situar a narrativa no género da ficção científica, ou da fábula, ou de um mito do princípio dos tempos, mas a história deste povo que atravessa o deserto em busca de uma Europa foge a qualquer classificação. Este grupo pode ser confundido com os migrantes que chegam em vagas provindos de África ou do Médio Oriente, tanto no tempo presente como outrora. Nessa travessia em busca de uma esperança as mulheres e os homens vão-se transformando. E num livro que nos fala de guerra mas também de amor e de sabedoria, o leitor é embalado pela coreografia desenhada nos movimentos das personagens e seduzido pelo ritmo da escrita de um poema que se vai desenrolando como uma serpente a rastrear as areias do tempo.
Hélia Correia é uma autora que aparece muito pouco mas foi possível conversar com ela em Sintra, no início deste ano.
Este é um livro difícil de classificar. Conforme lemos parece que o género se vai transformando mas sente-se como um mito ou uma história com ecos bíblicos. Será este um texto do princípio ou do fim dos tempos?
Eu não sei responder a essas perguntas. Quando escrevo textos literários, não tenho nem um pensamento, nem uma intenção, nem uma proposta. Não tenho absolutamente nada. E conheço bem a diferença entre um texto que eu faço com a minha inteligência, como um texto de apresentação de um livro, um texto sobre um tema ou um autor, como já fiz vários. Eu conheço esse modo de escrever, isto é, a proposta, a intenção, a pesquisa, que faço muito profundamente, a organização do texto e depois a elaboração da sequência escrita propriamente dita. Sei exactamente como se faz um texto com o conhecimento e com a pesquisa dos elementos necessários. Mas quando escrevo um texto literário não existe nada deste processo. Não há nada antes e não há nada durante, no meu ser inteligente, no meu ser de vontade. Há só o texto. Há só o seu começo. Este texto foi escrito absolutamente como um poema. Embora a minha prosa também tenha ritmo poético porque é a musicalidade que determina tudo o que eu escrevo, neste havia a respiração de um poema. Não o escolhi assim.
A única atitude que eu tenho é de espera. E nessa espera as coisas comparecem. Este texto não é totalmente um poema no sentido mais habitual do termo porque criou personagens, criou uma espécie de narrativa dentro dele e tornou-se uma narrativa poética, um poema narrativo, não sei como lhe chamar… Agora se eu quisesse responder à sua pergunta, fá-lo-ia sem grande honestidade ou teria de lhe responder como leitora, como pessoa que aborda o texto de fora e o interpreta. Como criadora, não lhe posso responder. Não há uma inserção cronológica nítida. Há uma sombra de tudo o que me preocupa como cidadã, mas é uma sombra muito vaga, porque a literatura ou a arte não foram feitas para servir causas. Talvez por ali paire aquilo que eu sinto ao testemunhar as ondas migratórias que espetam uma faca na nossa consciência e nos deixam perplexos.
No texto tudo é indefinido: o espaço, o tempo… A Europa que surge como horizonte pode ser lida de muitas formas, como muitas outras utopias. Sente-se uma preocupação sobre para onde caminhamos enquanto ser humano.
Não faço textos para traduzir nenhuma preocupação social. Entendo que o meu empenhamento social é para ser desenvolvido e tornado acção na minha faceta de cidadã. Se eu tiver uma preocupação que queira traduzir em texto, e já o fiz, escrevo um texto ensaístico e publico-o enquanto tal. É muito clara essa distinção. A escrita criativa não tem de servir, como disse antes, coisa nenhuma, nem problemas contemporâneos, nem ideias pessoais. Se passou alguma coisa de pessoal não foi por deliberação minha. É verdade que é um texto sobre uma demanda, mais que uma migração. É verdade que a Europa é nomeada como ponto de destino. Mas, como disse, não tomo decisões sobre o que escrevo. A Europa apareceu, como me apareceram aqueles diálogos. Não é uma intenção. Nem eu quereria que os meus textos concitassem esse tipo de reacções em alguém que os leia. Se bem que eu não escreva a pensar em leitores. Os meus leitores, as pessoas cuja opinião me inquieta, não chegam a contar-se pelos dedos das mãos. Quando essas pessoas me comunicam o modo como receberam um livro meu – um deles já não está presente (era o José Saramago) – fica encerrada a relação, não com os leitores, pois nunca a tive, mas com o próprio livro. Fica-me sempre na memória o meu encontro inicial com o texto, mas esqueço as páginas escritas, esqueço os seus pormenores porque já estou à escuta de outras coisas.
Foi um processo longo de escrita?
Foi um processo muito curto de escrita. Normalmente são coisas de rompante, bastante rápidas e que acabam ali, porque eu não releio o que escrevo. O momento fica encerrado rapidamente.
A Hélia diz que as palavras conduzem a história. Para ir a um livro que me é querido, no caso da Lillias Fraser o que surgiu primeiro?
O que surgiu primeiro e de certo modo unicamente foi a imagem da menina a fugir de Culloden. E a partir daí as personagens foram aparecendo. Lembro-me de uma vez em que fiquei muito contrariada porque se intrometeu uma personagem de forma inteiramente inesperada. Já nem me lembro do nome dele. A única coisa que ficava muito nítida nessa imagem inicial foi que tudo se situava no século XVIII, época sobre o qual eu não sabia absolutamente nada. Porque o desastre do Culloden teve lugar a meio desse século. E ali fiquei presa a um tempo que eu detesto e sobre o qual nunca me debrucei. Mas fui obrigada a ir atrás da menina.
E no Adoecer?
Foi muito diferente. O Adoecer tem a ver com uma personagem, uma pessoa, que vive comigo a vida inteira, a Lizzie Siddal. O processo é completamente diferente. Ela é uma personagem minha, da minha vida. É uma relação de uma vida inteira e de investigação de vida inteira. Aí sim, há investigação porque estive numa busca contínua. Ficou um pouco mais organizada quando percebi que iria escrever um livro. Não tem nada a ver com os outros textos.
Até porque é uma biografia. Ou será uma autobiografia?
Chamaram-lhe uma biografia afectiva. É tudo misturado. Foi um processo muito diferente e único.
Surpreendeu-a a recepção que o Adoecer teve por parte dos leitores?
Não faço expectativas sobre a recepção. Tirando pessoas que fazem parte da minha vida afectiva, e que por acaso são críticos, não estou atenta ao que se escreve sobre os meus livros.
Para quem leu toda a sua obra, este livro deixa-nos um pouco sem chão. Não temos a voz usual da narradora, até porque como a Hélia já disse Um Bailarino na Batalha é um poema. E encerra justamente com um poema…
É difícil… Eu não falo sobre o que escrevo, até porque não sei falar. É um domínio que me escapa completamente e não tenho também vontade de fazer um esforço para criar interpretações sobre o que escrevo. É um domínio da minha capacidade de escrita que não é transformável em raciocínio. O que deixa realmente num vazio, talvez mesmo frustradas, o que lamento, as pessoas que querem indagar sobre o texto, sobre as suas intenções, sobre as derivações que este pode sugerir.
Eu escrevo o que me aparece para ser escrito. Não tenho o mínimo compromisso sobre tempos e géneros de escrita. A única decisão que eu tomei nesse livro foi a capa. Tinha um grande desejo desta capa e os editores foram muito bondosos, satisfazendo-o. Trataram-me disso com muito carinho. Conseguiram negociar a reprodução do cartaz da dança Xenos. É o último solo do Akram Khan, que estreou em Atenas, e já me disseram que virá para o ano ao CCB. A origem, as motivações da dança são completamente diferentes. Mas a corporização traduz absolutamente em imagem aquilo que eu vi no meu texto.
Quando se olha para a capa e para o título parecem perfeitamente sincronizados. E além da musicalidade da prosa, a imagem da guerra e da dança estão muito presentes no texto.
É um texto muito coreográfico. Senti isso quando escrevi. O que não me admira porque a dança é a forma de arte mais importante na minha vida. A minha relação com a dança é muito forte. Costumo dizer que não quereria viver sem a dança. Se calhar sem a literatura conseguiria viver (risos)… Não, não conseguia, porque preciso das palavras. Mas tirando a literatura que, digamos, é a minha casa, a coreografia é uma forma de organização que eu entendo e aí pareceu-me que a disposição dos corpos era extremamente coreográfica. Um Bailarino na Batalha é uma citação de Nietzsche, que não servia como epígrafe porque o que enquadra essa expressão não é do meu gosto, mas acho a expressão maravilhosa. E então para epígrafe escolhi um outro excerto do mesmo livro de Nietzsche com tradução original… Nisso sim, tenho vaidade, porque é um favor que recebo. O professor João Barrento traduziu especificamente para a epígrafe. E o professor João Barrento é uma das pessoas da minha vida (risos), desse núcleo pequenino mas muito importante onde tudo se alicerça.
Para mim, enquanto pessoa muito dependente da dança e da cultura clássica, que são os meus dois grandes faróis de orientação, a imagem do bailarino na batalha é o cavalo. O grande perturbador das imagens da batalha é o cavalo. O Nuno Júdice tem um poema lindíssimo, sobre os cavalos de um quadro do Ucello em Florença. São justamente os cavalos que transcendem a realidade de uma batalha. E esta figura do cavalo na batalha, do animal imerso num cenário humano que lhe é completamente estranho, mas que depende profundamente dos seus próprios movimentos, é uma figura muito forte. Gosto muito desse livro de Nietzsche, os Ditirambos de Diónisos, e esta expressão do bailarino na batalha, que já vive na minha vida há muito tempo, é muito associada à perplexidade do cavalo. São dois elementos da natureza que estão ali perfeitamente desencontrados: o homem e o cavalo. E esta dança de um ser vivo que se vê preso numa violência organizada que não é a sua, que não entende, é daquelas imagens que me chama sempre, como desejo de entender, de entrar dentro do cavalo, de outro ser que não é humano para abarcar um pouco mais do nosso universo. Isso é muito claro, não exactamente para o livro, embora eu tenha essa noção da coreografia no livro, mas naquilo que me prende nas coisas vivas. Provavelmente muito mais do que a imagem dos refugiados.
Ao ler o epílogo em poema podemos até ficar com a imagem de que as personagens podiam ser cavalos. Pode este bailarino ser o próprio humano, numa metáfora da fragilidade da condição humana?
Na capa é o ser humano. É o Akram Khan que é claramente o bailarino na batalha. A capa traduz quase literalmente o título. Foi um encontro posterior, porque esta frase me acompanha há muito, e a imagem da dança só a encontrei depois de ter estreado, no princípio do ano de 2018, mas este encontro foi quase uma coincidência.
Como apareceram os nomes das personagens?
Uns são pessoas que eu conheço. A personagem principal, Awa, é uma amiga minha. Quanto a outros, eu sou sempre uma estudante, estou sempre a investigar e a procurar palavras. Aliás, é para isso que me serve a net, e serve-me maravilhosamente, não para ser interactiva e comunicar com pessoas, mas para dar oportunidades imensas à investigação. Investigo muito sobre línguas que não conheço, sobre línguas minoritárias, sobre significados, sobre nomes. Ainda agora descobri uma língua chamada mingrélico e estou fascinadíssima com ela. Ando sempre de roda daquilo que não conheço por formação minha. O latim e o grego e as línguas românicas aprendi-os nos bancos da escola. Estou sempre à procura de outras coisas, não só em termos de línguas mas também de ciências, de história, etc.. O significado dos nomes é uma zona de investigação de que gosto muito das línguas diversas, do nome que traduz uma ideia ou um elemento do real. E nas línguas árabes, por exemplo, encontro nomes belíssimos. E reuni uma espécie de colecção de nomes significantes, de nomes cheios, que nós também temos, quer no Ocidente, quer em Portugal. A começar pelo meu próprio. Imagine, eu fico espantada ao constatar como é que uma palavra que forma tantos compostos, como Helios, tem um significado desconhecido para tanta gente. Eu refiro com frequência esta origem, até porque odeio o Sol, provavelmente porque já o tenho no nome… Fico espantada com a negligência com que as pessoas foram perdendo a percepção de que os nomes são entidades significantes. E, portanto, fui buscar nomes com significação. De Awa eu não conheço a significação. Awa é um nome africano para Eva. Eva não sei o que significa, para além do convencional «primeira mulher». Não tenho curiosidade pelo hebraico. Awa é um nome que eu acho muito bonito e que, quando caiu no texto, me deixou muito feliz. Praticamente todos os outros nomes têm significado.
Nas suas outras obras são as mulheres que irradiam um brilho dourado e imbuídas de magia. Mas neste texto, em que durante a migração as personagens se vão transformando, temos homens que sofrem uma metamorfose e ganham capacidades.
(Risos) Não faço a mínima ideia, nem sequer me tinha apercebido disso… Há uma quase simbiose com o animal, o velho que se transforma em águia, o Tariq que se transforma em serpente e o Erend é o que cria luz.
É muito engraçado porque o ponto de vista feminista e de literatura de género receberam os meus livros como algo muito significante do ponto de vista que lhes interessa. As figuras das mulheres muito fortes e os homens fracos. Os ambientes femininos. Certas correntes interpretativas tentam juntar isso ao biografismo e à história de vida da mulher. É muito engraçado porque eu não tive experiência nenhuma de vida feminina. As grandes figuras da minha vida são masculinas. Eu nunca fiz parte de alguma forma de gineceu, dos grupos de mulheres a contar as suas histórias, aquele lugar comum que se atribui à experiência de vida de uma pessoa do sexo feminino que escreve. Não tive educação sexista, não fui nada educada como rapariga para ser mulher. Tive uma educação progressista, laicíssima, pró-científica. E, no entanto, pelos vistos, os livros transmitem esse universo feminino que nada tem a ver comigo. Acontece, mas não sei como é, os textos para lá vão, mas a minha experiência biográfica é absolutamente estranha a tais ambientes.
Agora, se são os homens os mais fortes neste livro, trata-se de algo que também aconteceu no texto. Não houve nenhuma intenção da minha parte, nada pensei sobre isso, no furor da escrita, naquela ânsia de chegar a um sítio e libertar-me daquele escrever que é uma compulsão, uma obsessão que eu só me quero que termine porque estou presa durante o tempo da escrita. Provavelmente foram os nomes deles que lhes deram essa força… Sei que fiquei muito feliz quando vi que havia nas personagens um elemento animal forte porque isso para mim, na minha vida pessoal, é muito importante. O entrosamento com o animal e com o vegetal. A não-separação dos ditos reinos da natureza. E quando vi isso acontecer fiquei muito feliz e lembro-me desses momentos como se uma dádiva especial. Quanto ao menino com a visão não sei… Realmente eu não sou uma dialogante fácil quanto ao que escrevo. Quando saímos desse assunto e passamos a conceitos sociais e culturais, creio que me torno boa conversadora…
Sei que a Hélia não é de fazer projectos mas tem agora algo em curso?
Nunca falo do que estou a escrever. Não falo do que escrevi porque não sei e não falo do que estou a escrever por tabu ou superstição. Aliás, a forma como este livro apareceu, o vazio onde ele entrou, foi justamente um vazio porque o título do que eu estava a escrever foi divulgado e o livro bloqueou completamente. Foi uma coisa terrível na minha vida. Tenho sempre muito medo. Quando estou a escrever sofro uma grande violência no meu quotidiano porque é uma compulsão e eu gosto mais de andar a passear pela serra do que de estar quieta à secretária. E é um período de muita ansiedade e insegurança. Tenho sempre muito medo de acordar e não ter lá nada. Ter-me desaparecido o texto, aquele mundo onde eu estou. Que é o medo que eu também projecto sobre os livros de que gosto muito, aos quais tenho de ir ver, de folhear. Faço isso muitas vezes. Com o Pedro Páramo, por exemplo. Penso que vou abrir o livro e encontrar as páginas em branco…
Penso que um texto assim não pode existir, que fui eu que sonhei… Portanto houve uma fuga, o título foi divulgado, o livro parou, eu bloqueei. Foi uma coisa muito má. E depois nesse vazio absoluto apareceu este texto que foi escrito. E eu não sabia se o outro voltava, se não voltava. Não fazia ideia nenhuma. Estava aflita. E agora voltou. Fez as pazes… Porque já houve um que me desapareceu completamente. Dei uma página do que estava a escrever para sair numa revista e era um livro que eu estava a amar muito, mas as personagens desapareceram e nunca mais as vi…
E agora apanhei uma grande susto mas parece que já passou. As palavras foram lá não sei para onde mas já voltaram, já me deixaram entrar. Mas nunca posso garantir nada porque isto não é um projecto que eu controle.
Para dar um exemplo de escrita em que eu sinto que tenho mão, posso falar de uma pequena comunicação sobre Bioética que aceitei fazer. É um universo que me preocupa mas sobre o qual nada sei. Sobre esse texto, tomei decisões claras. Tomarei Mary Shelley como figura central e desenvolverei alguns conceitos da história literária e científica, consciente da minha ignorância sobre o grande tema mas também da contribuição que posso dar. Mas quanto ao texto criativo não sei se vai acontecer, se amanhã está cá, se se aborrecem e desaparecem… Sou sempre uma mendiga. A Maria Gabriela Llansol tem uma frase belíssima: «Os livros são pobres que caem do céu». São daquelas frases que me acompanham a vida toda, como um bailarino na batalha. Não sei se amanhã alguém me dá comida e abrigo porque em relação à escrita sou uma mendiga. Não sei o que me vão dar, se morro à míngua…
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Janeiro)