Era uma vez uma cidade em que um aniversário demora dois meses ― Outubro e Novembro ― e se celebra de muitas e diferentes maneiras. Era uma vez um aniversariante que nunca existiu mas teve direito a carta astrológica e deu nome a uma biblioteca. Era uma vez uma Partilha Alternativa para a qual todos contribuímos, o conhecimento numa mão, a criatividade na outra numa coreografia inédita. Acontece a Sul, na encantadora Tavira onde todos nos unimos para participar na Festa dos Anos de Álvaro de Campos, essa ideia tão profícua quanto desafiante de Tela Leão.
Para pensar o tema deste ano ― O Modernismo do nosso passado ― escolhi o poema Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa ortónimo. É um poema de verso live, dividido em seis partes de estrutura irregular. Este exemplar magnífico do interseccionismo literário, dizem os entendidos que traz para a literatura o processo de sobreposições dinâmicas que caracteriza a pintura futurista. Vejamos: “Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito/ E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios/ Que largam do cais arrastando nas águas por sombra/Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…/ O porto que sonho é sombrio e pálido/ E esta paisagem é cheia de sol deste lado…/ Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio/ E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…/ Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…/ O vulto do cais é a estrada nítida e calma/ Que se levanta e se ergue como um muro,/ E os navios passam por dentro dos troncos das árvores/ Com uma horizontalidade vertical,/E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…/ Não sei quem me sonho…”.
Em consciente ousadia filosófica permito-me dizer que este poema é uma exaltação das sinergias na esteira de Correspondances de Baudelaire. Mas aquilo que Baudelaire apenas enuncia ou aponta para, Pessoa faz acontecer. Identidade e diferença esbatem-se no enraizamento no uno universal que se sente latir por trás das palavras. O real perde solidez e já quase não o distinguimos da consistência do sonho. Contudo, não existe aqui a desmesura ou o extravasar emotivo de uma Ode Naval. É um esbater de contornos numa estética fina e precisa, as palavras tornam-se transparentes, vemo-las umas através das outras numa claridade de vidro lavado. Apenas esse elemento cristalino separa as entidades.
Em Diferença e Repetição publicado em 1968 Gilles Deleuze diz-nos: “Na verdade, a distinção do mesmo e do idêntico só é proveitosa se se levar o Mesmo a submeter-se a uma conversão que o refira ao diferente, ao mesmo tempo que as coisas e os seres que se distinguem no diferente sofrem de modo correspondente uma destruição radical da sua identidade.” José Gil, no prefácio, acrescentará que “a torção em virtude da qual a negação da identidade se dissolve, fazendo emergir a afirmação da diferença, é o próprio movimento do eterno retorno”. Em continuada ousadia permito-me pensar que o esbatimento de identidade e diferença só pode acontecer com um terceiro vértice: a equanimidade. Através dela consegue suspender-se a capacidade de julgar sempre tão diferenciadora. Então, as metáforas florescem neste solo fértil.
A filosofia treina a expansão da mente, a possibilidade de experimentar pontos de vista alternativos, alguns consentâneos, outros irreconciliáveis. Através da viagem ao futurismo do nosso passado este Café Filosófico propõe exactamente o exercício de sair de si, das opiniões e hábitos enraizados, para experimentar um ver-se e sentir-se de tantas diferentes e alternativas maneiras.
Venha daí dia 26 de Outubro até ao Nó de Gosto tomar um Café Filosófico à Chuva Oblíqua das 18:30!
Inscrições para o Café Filosófico: [email protected]
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Outubro)