Para quem desde sempre foi educado a não mentir e a tomar as mentiras como um pecado terrível, dispor-se a escrever sobre tal matéria envolve a priori uma valente dose de incomodidade. Mas este é um tema em que os queridos participantes do Café Filosófico vêm insistindo há bastante tempo. Fevereiro, mês das máscaras, do Carnaval, do disfarce, pareceu-me o momento adequado para me enfrentar a este assunto.
Existem as chamadas mentiras piedosas que se dizem, por exemplo, a um doente terminal ou para protecção de um ente querido. Se durante a 2ª Guerra Mundial nos aparecesse a Guestapo à porta, não iríamos admitir que escondemos o nosso amigo judeu na despensa, certo? Existem também as mentiras inofensivas que fazem o mundo girar, como clicar no quadradinho “li e concordo” dos termos e condições de algum serviço da internet. Estas mentiras são, na generalidade, toleradas. É evidente que se todos nós mentíssemos constantemente a propósito de tudo e mais alguma coisa não existiriam comunidades humanas. A mentira destrói o tecido social! Dos seus malefícios todos estamos plenamente cientes, portanto, guardarei os caracteres que me restam para abordar esta questão de ângulos menos convencionais.
Se pensarmos um bocadinho repararemos que os nossos heróis dos filmes mentem imenso! Mentem por boas razões, claro, para criar uma cilada e apanhar um vilão, fazem-se passar por outros para espiarem alguém ou obter informações, etc. Nos filmes admiramos estes personagens pela sua destreza e jamais nos paramos a pensar nas implicações éticas de tais condutas. Casos há até que nos identificamos e desejaríamos ser como tal espiã, mestra em disfarces e álibis. Por que será?
Há ainda um outro aspecto em que a mentira joga um papel preponderante; quando vemos um filme ou lemos uma história nós sabemos que é ficção, mas fazemos de conta que é verdade. Senão não nos envolvemos! Esta suspensão voluntária da descrença é uma condição sine qua non para podermos entreter-nos com uma boa história. A ideia foi apresentada pela primeira vez no livro Uma História Verdadeira do poeta satírico Luciano de Samóstata, que viveu no séc. II durante o reinado de Marco Aurélio. No prólogo o autor assume-se como mentiroso e apela à credulidade do leitor. Porém o livro relata uma viagem à lua e contactos com vida extraterrestre. Factos que ou aconteceram ou se difundiram através da ficção científica.
Talvez não tenha havido em todos os tempos, filósofo mais cioso da verdade que Platão. Acreditando na inexistência de uma equivalência inexorável entre a Bondade, a Beleza e a Verdade, baniu todos os artistas da sua cidade ideal que retrata na República. O que seria de nós, caro leitor, num mundo sem arte?! Imagine um mundo sem nenhuma imaginação ou fantasia… Impossível, não é?
Foi o seu discípulo Aristóteles quem criou condições para o nascimento das Belas Artes ao admitir que os artistas podiam reproduzir a realidade de forma igual, inferior ou superior. Na esteira aberta por Aristóteles Oscar Wilde escreve em 1889 um artigo escandalosos intitulado O Declínio da Mentira. Aqui se defende fervorosamente que a arte deve “rejeitar a sinceridade, a fidelidade e a exactidão, e optar pela máscara e pela mentira”. Aliás, “o acto de contar belas coisas não verdadeiras é o propósito exclusivo da arte” e a sua função “assaltar de surpresa o previsível e o prognosticável”. Em Wilde os papéis invertem-se e é a vida que copia a arte, e a máscara é mais valiosa que a pessoa que a usa: “o interessante nas pessoas de boa sociedade é a máscara usada por cada uma delas, não a realidade mentirosa que sob a máscara se esconde.” Até a nossa visão do mundo é mediada pela arte: “As coisas existem porque nós as olhamos, e do modo como as vemos depende a influência que, pela mediação da Arte, exercem sobre nós. (…) Não se vê coisa nenhuma enquanto não se repara na sua beleza. Então, e só então, a coisa se eleva ao nível da existência. Presentemente as pessoas reparam nas névoas, nas por serem névoas, mas porque poetas e pintores lhes conferiram todo o misterioso encanto dos seus efeitos.”
Já Nietzsche no seu Sobre Verdade e Mentira afirma que o homem busca a verdade por razões pouco nobres, “anseia as consequências agradáveis da verdade, aquelas que mantêm a vida;” e mostra-nos claramente os limites da linguagem e a impossibilidade de se alcançar a verdade nela. “Que é então a verdade? Uma hoste em movimento de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, extrapoladas e adornadas poética e retoricamente e que, depois de um uso prolongado, um povo considera firmes, canónicas e vinculantes;”.
A Arte de Mentir é o título do livro de Kazuo Sakai ― psiquiatra no hospital de Shibamata do Japão ― e Nakana Ide ― pseudónimo de um próspero homem de negócios e ensaísta que dirige uma grande editora na cidade de Tóquio. Neste livro podemos encontrar capítulos como: “Mentiras que tornam uma mulher mais bela”, “Mentiras que ajudarão um homem a triunfar”, ou “Mentiras que fazem com que o mundo gire”. O livro é um mergulho na para nós exótica e distante cultura japonesa. Segundo Ide Nakada “uma boa mentira é como a utilização de especiarias na cozinha: melhoram o sabor e acrescentam variedade ao desfrute da vida.” Por isso a mentira é, para este autor, essencial! Afirma ainda que “contrariamente ao que os nossos pais e educadores nos ensinaram, as pessoas que mentem têm frequentemente vidas muito mais profundas e interessantes. Consequentemente, o último capítulo deste livro ensina a mentir eficazmente de forma a que os leitores possam desfrutar da vida “com mais cor e riqueza”.
Com tantos pontos de vista provocadores de que está o leitor à espera para se juntar a nós no Café Filosófico?
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Fevereiro)